As ações mais eficazes e de maior impacto têm vindo de iniciativas comunitárias e não de forma centralizada. É a emergência de uma comunidade de esperança.
De repente, em pouco mais de um mês, as nossas vidas mudaram substancialmente.
Fomos postos à prova. Fomos obrigados a encontrar soluções imediatas para problemas de que muito pouco sabíamos. Tivemos pouco tempo para pensar. A situação obrigou-nos a sermos criativos para nos adaptarmos rapidamente.
A forma como o governo e as empresas têm reagido à pandemia tem sido (e continuará a ser) abundantemente escrutinada. Mas vale a pena olhar com mais atenção para a forma como nós, cidadãos, temos reagido às circunstâncias. Por isso, tenho acompanhado com atenção inúmeras iniciativas da sociedade civil, movimentos de voluntários e atividades comunitárias que se têm multiplicado pelo nosso país, pela Europa e pelos Estados Unidos.
Iniciativas como o Tech4COVID19 ou o Projeto Open Air (para nomear apenas alguns) têm demonstrado uma capacidade impressionante de mobilização cívica em nome de um propósito comum. E, mais importante, têm conseguido um impacto de tal forma significativo que me arrisco a dizer que a sociedade civil assumiu, de forma inequívoca, a liderança na resposta à pandemia.
É a emergência de uma comunidade de esperança.
Estes movimentos orgânicos mostram-nos a capacidade que tivemos de transformar distanciamento físico em proximidade social; de transformar medos individuais em esperança comum; de transformar o encerramento geral num momento de criação coletiva de algo melhor para todos nós.
Ao analisar com atenção estes movimentos, identificámos sinais fortes e denominadores comuns claros que nos permitem perceber algumas das razões para o seu impacto.
Digital
Em primeiro lugar, estas iniciativas fazem uso alargado e eficiente das tecnologias digitais. Da mesma forma que as empresas e as instituições tiveram de acelerar a adoção do digital e do online de forma a protegerem pessoas e negócios, a verdade é que os movimentos orgânicos têm uma capacidade de alavancar os meios digitais para amplificarem o seu impacto. Plataformas que permitem marcação rápida de consultas online com médicos; apps que permitem a disponibilização de quartos para profissionais de saúde impedidos de voltarem aos seus lares; sites onde encontramos atividades educacionais para ocuparmos as crianças que estão em casa; tecnologias que permitem que pequenos negócios possam passar a vender online rapidamente; plataformas de crowdsourcing que permitem a massificação da impressão 3D de componentes para equipamentos de proteção e para a construção de ventiladores… São tantos os exemplos da utilização de tecnologias digitais para a resolução rápida de problemas, para o apoio aos profissionais de saúde e para a proteção e continuidade dos negócios.
O “Digital for social good” é um movimento imparável.
Descentralização
Muito antes do governo português ter decretado as primeiras medidas de contingência, e muito tempo antes de haver estado de emergência, empresas, ONGs, instituições sociais, culturais e desportivas tinham já, voluntariamente, decidido proteger as suas comunidades e tinham proactivamente adotado medidas de contingência e de proteção.
Apesar do papel essencial dos órgãos de soberania, a verdade é que a grande razão para a aparente contenção da pandemia em Portugal tem estado no comportamento e na atitude dos portugueses (apesar das péssimas exceções que, aqui e ali, assistimos). A sociedade soube interpretar rapidamente os desafios e soube aprender com os exemplos que chegavam de Itália e de Espanha.
Mas também por todo o mundo, as ações mais eficazes e de maior impacto têm nascido nas iniciativas comunitárias e não de forma centralizada. O movimento orgânico “Andrá tutto bene”, nascido nas varandas italianas, tem sido mais poderoso e eficaz em pedir às pessoas para ficarem em casa do que qualquer campanha governamental. No Reino Unido, apesar das resistências iniciais do Governo, formou-se um enormíssimo “exército de voluntários” para o sistema nacional de saúde, de tal forma que o governo britânico teve que ajustar a sua posição. O Projeto Open Air, lançado pelo cientista português João Nascimento, não esperou por qualquer medida governamental para reagir à escassez de ventiladores um pouco por todo mundo. E isso permitiu o desenvolvimento do primeiro ventilador “open source”, nascido da co-criação, da colaboração e da generosidade dos seus voluntários, naquilo a que o João chamou de “primeira patente detida pela Humanidade”.
O surgimento destes movimentos orgânicos descentralizados mostra a vitalidade da sociedade civil e a sua capacidade empreendedora. E essa é uma vitória da democracia liberal e da iniciativa individual.
Desintermediação
A crónica falta de confiança dos cidadãos nas suas instituições levou, na última década, à emergência de modelos de negócio assentes na desintermediação e no contacto direto entre utilizadores. A economia da partilha assenta fundamentalmente nessa nova moeda de troca: as referências, as recomendações e a confiança entre pares.
Essa é também uma característica destes movimentos. O movimento Tech4COVID19 é um bom exemplo da força de um coletivo de pares, que, em pouco mais de duas semanas, evoluiu de uma ideia para uma plataforma com mais de 5.000 voluntários e com 70 projetos em desenvolvimento. Também a forma como cientistas e centros de investigação se têm juntado, de forma rápida e orgânica, em iniciativas de crowdsourcing, sem orientação superior das suas instituições ou da sua tutela, ou a forma como a iniciativa do Instituto de Medicina Molecular de criar um teste 100% português acaba por se tornar na base de uma estratégia governamental, são excelentes exemplos de iniciativas que fizeram bypass a qualquer intermediário oficial e que nasceram de puro sobressalto cívico e do espírito empreendedor.
Essa natureza desintermediada destes movimentos orgânicos mostra-nos que todos podemos ter uma voz. Todos podemos ter um papel. E que as nossas ações individuais, quanto conectadas, fazem a diferença na vida de todos nós.
Estas iniciativas são exemplos simples, mas extraordinários, que nos lembram a nossa capacidade de encontrarmos o melhor em cada um de nós e de agirmos de forma generosa em prol do bem comum.
Estes movimentos mostram-nos que nós, cidadãos, estamos prontos a construir um novo e melhor normal. Que estamos prontos a redesenhar a forma como vivemos em sociedade. Que estamos prontos a liderar esta transformação.
Enquanto comunidade de esperança, estamos prontos a fazer bem as coisas certas.
[Artigo publicado originalmente no Observador, a 18.04.2020.]