Depois de um longo período em crise o setor reinventou-se e, em 2016, passou a barreira dos 5 mil milhões de euros em exportações. Isto só foi possível porque “as empresas souberam mudar, adaptar-se e a gestão tornou-se muito profissional”, refere Paulo Vaz, Diretor Geral da Associação Têxtil e Vestuário de Portugal e coordenador do Programa de Gestão de Negócios de Moda.
O setor têxtil e do vestuário viveu uma crise profunda no final do século XX e início do século XXI. Como é que, em pouco mais de 15 anos, o setor se conseguiu reinventar e obter resultados tão positivos?
Essa é uma questão e que merece ser discutida e, de alguma maneira, até celebrada. Eu diria que hoje o setor têxtil e do vestuário é um case study internacional. É analisado e estudado como um caso de sucesso e que muitos países gostariam de ver replicado nas suas próprias indústrias e setores. Eu diria que isto tem que ver com a situação que foi criada na altura em que enfrentou focos competitivos violentíssimos.
O primeiro foi a abertura e a liberalização do comércio internacional, o que permitiu que países terceiros pudessem exportar para os blocos mais ricos do mundo, nomeadamente a Europa e os Estados Unidos, sem limitações quantitativas. Este foi o primeiro grande choque.
O segundo foi a entrada da China em 2000 na Organização Mundial do Comércio aproveitando tudo de bom que isto tinha sem ter as mesmas obrigações. Nunca cumpriu os critérios mais elementares da reciprocidade nas trocas comerciais, ambientais e sociais. Uma série de coisas. Tudo somado a China foi um tremendo competidor e trouxe consequências não só em Portugal mas um pouco por todo o mundo. A isto veio juntar-se a abertura da União Europeia em 2004 aos países de Leste. E por fim a crise financeira global de 2008 que tocou a todos e que foi essencialmente uma crise de consumo. E a indústria teve que reagir.
E como foi feita essa reação?
A primeira reação teve a ver muito com o esforço que a ATP fez com dois parceiros internacionais - Turquia e Estados Unidos - em que se criou uma espécie de coligação para enfrentar esta ameaça. Nós criámos a GAFFT para proteger as nossas indústrias e isto acabou por se tornar um lobbie importante que acabou por interferir junto dos governos nacionais e das instâncias europeias. Conseguimos ter êxito de tal forma que se adiaram os prazos de adaptação a esta liberalização total. Com isso ganhamos mais dois anos para as empresas e as indústrias se prepararem.
E prepararam-se? Como?
Fazendo emagrecimento onde podiam, cortando gorduras e olhando para pontos de diferenciação que não fossem pelo preço. Estamos a falar de apostar em moda, design, coleções, serviços e mais presença em eventos internacionais. E também na inovação tecnológica e nos têxteis técnicos e funcionais. Este foi um processo que se desenrolou desde então e que a partir de 2010 iniciou uma trajetória ascendente que desde então, felizmente, não tem parado e se tem consolidado.
A inovação, as alterações nos modelos de negócio e o crescente interesse pela moda nacional e o reconhecimento de estilistas portugueses a nível internacional também tiveram um papel importante?
Eu diria que foi determinante às empresas mudarem. E foram três coisas que mudaram radicalmente. Se eu quisesse dizer quais foram os fatores críticos de sucesso no setor de então para cá eu diria que a primeira foi o deixar de competir pelo preço para passar a competir pelo valor. As empresas perceberam que pelo preço nunca ganhariam este campeonato. E uma proposta de valor é oferecer ao cliente algo mais do que um simples produto que se distingue apenas pelo preço. Estamos a falar de produtos que são inovadores tecnologicamente como já referi anteriormente.
A segunda mudança foi de mudança de atitude. Deixamos de ser tomadores de encomendas e tivemos que passar a ser geradores. Estávamos habituados a estar tranquilamente à espera que os clientes viessem ter connosco. Não havia uma pró-atividade em ir atrás dos clientes e estar nos mercados. Foi necessária a internacionalização e agora estamos presentes todos os anos em 85 feiras espalhadas por 35 países trabalhando a imagem e criando uma marca. Isto foi uma mudança radical na forma de estar nos negócios e nos mercados internacionais. Os números espelham isso. Se na altura da crise as exportações estavam nos 65% em 2016 rondava os 80%.
A terceira é uma orientação estratégica. A partir do início da primeira década deste século o setor começou a fazer cenários e planos estratégicos e começou a realizá-los e a adotá-los. Até ao momento foram três e todos eles coincidiram com quadros comunitários de apoio. O primeiro com o POE, o segundo com o QREN e o terceiro com o Portugal 2020. E isto porquê? Porque permite alinhar o que são as políticas públicas com aquilo que são as orientações estratégicas do setor privado permitindo aceder a fundos estruturais e fazendo investimentos. E com isto foi-nos possível obter os resultados que conseguimos.
Em 2016 e relativamente ao ano anterior, registou-se um crescimento de 5,1% nas exportações no setor. Um crescimento que superou todas as expectativas. Como olha para estes dados?
Era um objetivo estratégico que tínhamos apontado só para 2020 mas porque procuramos ser sempre conservadores e prudentes nas nossas análises. Gostamos sempre de ter os nossos pés presos à terra. Mas os resultados alcançados significam que vamos ter que reformular um conjunto de objetivos até 2020 e que terão que ser mais ambiciosos que aqueles que tínhamos previsto. É um sinal que o setor se portou particularmente bem ao longo destes últimos anos.
É coordenador do Programa de Gestão em Negócios de Moda na PBS. Qual a importância deste tipo de programas? Qual o impacto que podem ter enquanto catalisadores de melhores desempenhos ao nível da gestão e obtenção de melhores resultados no setor?
Precisamente um dos eixos de intervenção que apuramos foi na área da gestão. Acho que o setor melhorou muito nos últimos anos a este nível e, hoje em dia, encontramos empresas que são muito mais bem geridas e muito mais profissionais. Eu conheço algumas empresas que diria que estão quase no topo do estado da arte daquilo que podemos encontrar à escala mundial. Já não ficamos a dever nada às melhores táticas que podemos descobrir pelo mundo fora.
Mas ainda há muitas empresas que precisam de fazer melhorias apreciáveis a esse nível e o facto de termos lançado com a PBS este programa vai nesse sentido, de se querer uma gestão cada vez mais profissional e capacitada, porque hoje o setor tornou-se muito exigente desse ponto de vista. Hoje só os bons profissionais podem ficar neste setor que é complexo e difícil, mas também apaixonante em muitos domínios e vertentes.
E a gestão é importante porque neste setor as margens são apertadas e não admite muitos erros. Além de que pelas suas próprias características está sujeito a grandes mudanças e mudanças constantes. Desde o clima à política, à economia ou ambiente tudo acaba por fluir positivamente ou negativamente na maneira como as empresas são geridas. Por isso para quem quer continuar aqui ou começar a sua vida enquanto empresário é necessário e indispensável que esteja capacitado e atualizado num conjunto de temas que vão desde a estratégia, novas tendências, do próprio conhecimento do consumidor, com a logística, a cadeia de aprovisionamento, etc. Tudo isto são matérias indispensáveis para os gestores nesta atividade e que um curso desta natureza lhes dá.
Que futuro tem este setor pela frente? Que desafios pode esperar?
Tendo em conta que é um setor essencialmente de base industrial, o maior desafio será manter-se competitivo por essa via e tentar aprofundar a inovação tecnológica, a moda, o serviço, a capacidade para estar mais presente à escala internacional e diversificar mercados. Isto é algo que tem que passar pela cabeça de qualquer gestor em qualquer setor empresarial. É preciso estar atento às novas tendências desta indústria e às tendências de consumo que se vão manifestar para o futuro. Quem está nesta atividade não pode de forma alguma descurar o facto de que vamos ter dentro em breve a economia digital a fazer parte das nossas vidas.
Eu diria que se estivermos com um pé firme e conhecedor neste domínio podemos encontrar enormes oportunidades que não nos foram oferecidas no passado. Até porque aquilo que é a economia digital hoje de alguma forma reduz em muito os investimentos de uma empresa para se implementar a nível internacional. Por exemplo, estou a pensar em empresas que no passado, para entrarem no mercado internacional, tinham que abrir pontos de venda por todo o mundo com investimentos de milhões de euros o que restringia a expansão de muitas. Hoje, com o comércio eletrónico há muitas barreiras que se quebraram, muitos intermediários que desapareceram do caminho e a relação com o consumidor final acaba por ser muito mais fácil de atingir e com custos muito menores.
Por outro lado também temos um outro desafio tecnológico, que são os novos produtos de alta tecnicidade e funcionais. Um têxtil não só orientado à moda e ao vestir mas para outros setores. Há cada vez mais têxtil nos automóveis, nos aviões, na saúde, na construção e, portanto, é um novo mundo que se abre e como tal espera-se que as empresas tenham capacidade de inovar. É motivador e desafiante saber que há muito caminho a percorrer e que as empresas têm uma alternativa de diversificação de atividade que pode ser muito interessante.
Eu diria que estes são os grandes desafios. Ou seja, mantermo-nos competitivos industrialmente e empresarialmente e não perder o desafio que são as novas tecnologias e de comércio eletrónico no mundo digital porque aí há muitas oportunidades que podem ser aproveitadas e por fim não descurar aquilo que é a diversificação que o têxtil está a conhecer ao nível da inovação tecnológica para outros setores de atividade.