[artigo publicado originalmente no nº 1 da revista NORTE.AR., em maio de 2020]
Estava a regressar de Londres, onde trabalhava, para a minha casa no Porto e comprei um livro com o título: ‘The Hot Topic - How to Tackle Global Warming and Still Keep the Lights on’ (‘O Tema Quente — Como Lidar Com o Aquecimento Global e Continuar Com as Luzes Acesas’). Publicado em 2008, um dos co-autores foi Sir David King, cientista de renome internacional e, na altura, o principal conselheiro científico do governo britânico.
O livro explicava como a poluição da atmosfera por emissões de combustíveis fósseis decorrentes da atividade humana estava a causar uma séria destabilização do clima na terra e de como a nossa atual trajetória resultaria provavelmente em devastação alargada, perda de vida e numa dramática alteração no nosso modo de vida — tudo isto no decorrer das vidas das pessoas que estão hoje vivas.
A ameaça das alterações climáticas pode parecer algo de abstrato. Contudo, quanto mais me informo, mais compreendo que esta questão tem implicações bem reais e muito sérias.
No meu caso — a minha família produz vinho desde 1882 — dependemos de um clima estável e de um ambiente saudável para as nossas vinhas. Temos uma perspetiva de longo prazo; pensamos em termos de gerações. Quando observo o que o futuro reserva para os meus filhos — no contexto da crise climática — é natural que faça tudo o que estiver ao meu alcance para evitar o futuro devastador que os peritos preconizam. A pandemia do coronavírus que atualmente desestabiliza as economias, meios de vida e as vidas de cada um em todo o mundo é devastadora e traz pouco de positivo. É, certamente, a prioridade absoluta dos governos, dos serviços de saúde e das comunidades em todo o lado.
Porém, um dos efeitos secundários do abrandamento forçado de grande parte da economia é a oportunidade de refletirmos — de um modo coletivo — sobre o nosso modo de vida, sobre os desafios que enfrentamos como comunidade humana e sobre o mundo que queremos construir quando emergirmos deste confinamento.
Falando por mim, reflito sobre se realmente estou a fazer tudo o que posso para salvaguardar o futuro que os meus filhos irão herdar, uma vez que acredito que nada é mais importante. Dentro da minha própria esfera de influência, como indivíduo, como empresário — que mais posso fazer? Que mais devo fazer?
Na altura, em 2008, quando li o livro, estava preocupado, mas não ainda completamente alarmado. Se todos os governos do mundo e os seus conselheiros estavam cientes da magnitude da ameaça das alterações climáticas — raciocinei — estaríamos então no caminho certo em direção a acordos globais para redução de emissões.
Infelizmente, e apesar das Conferências anuais sobre Alterações Climáticas organizadas pelas Nações Unidas e do aclamado Acordo de Paris em 2015, as emissões anuais continuam a subir.
Em 2018, o Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) reportou que limitar o aquecimento global em 1,5°C obrigaria a ‘alterações sem precedentes, rápidas e muito abrangentes, em todos as áreas da sociedade’. Especificamente: ‘emissões globais líquidas de dióxido de carbono, provocadas pela ação humana teriam de cair na ordem dos 45% — níveis de 2010 — até 2030, atingindo um aumento zero por volta de 2050.’ Se a redução em 1,5°C já se afigurava difícil, caminhamos atualmente numa trajetória que dificilmente manterá o aumento abaixo dos 2°C.
Quanto mais me interrogo sobre esta questão, mais me dou conta que a crise ambiental que invade o planeta é a questão do nosso tempo. As ações que tomarmos — ou deixarmos de tomar — definirão a minha vida, a minha carreira e as de todos aqueles que conheço e amo.
Não se trata apenas das alterações climáticas. O nosso modo de vida, que pressupõe a extração de matérias primas e recursos naturais da terra, transformando estes em algo para o consumo humano, ficando depois com resíduos é — literalmente —insustentável. Os sistemas naturais da terra de que dependemos para a nossa existência, mostram sinais de que não poderão suportar o nosso comportamento, dando mostras de que começam a falhar.
Em 2017, o artigo científico intitulado, “Aviso de Cientistas Mundiais à Humanidade: Um Segundo Alerta” foi publicado no Bioscience jornal. Foi assinado por mais de 20.000 cientistas de todo o mundo, o que foi o maior apoio formal de sempre a um artigo do género. O documento é uma atualização da versão original publicada em 1992 pela Union of Concerned Cientists
(União dos Cientistas Preocupados). A primeira nota começou por dizer, “os seres humanos e o mundo natural estão em rota de colisão”, continuando depois a descrever tendências como a poluição e a diminuição de recursos de água doce, excesso de pesca, deflorestação, populações de fauna selvagem em queda livre, além das emissões insustentáveis de gases de efeito de estufa e aumento das temperaturas.
Nós, coletivamente — os humanos — somos uma espécie extremamente inteligente. Somos espertos. Cooperamos para alcançar coisas que seriam impossíveis, individualmente. Mas somos sábios? A ciência é clara.
Sabemos o que estamos a fazer aos sistemas naturais que nos sustentam. Conseguiremos encontrar dentro de nós a capacidade de adaptar os nossos sistemas, sejam eles políticos, industriais, económicos, sociais ou culturais, para estarmos à altura da escala dos desafios levantados pela crise ambiental? E, se a resposta for sim, o que pode o momento atual — uma desaceleração no contexto de uma pandemia global — trazer-nos? Há duas semanas, John Simpson, um muito respeitado jornalista da BBC há 53 anos, interrogava-se, ‘quando terminar a crise do coronavírus, recordaremos que existe algo infinitamente pior e mais destrutivo a pairar sobre nós: a ameaça ao nosso planeta.
Se nos podemos confinar por causa de uma doença, não poderemos trabalhar em conjunto para fazer o necessário para nos salvarmos do desastre vindouro? É a pergunta certa.
A resposta à crise do coronavírus também mostrou que, quando confrontados com uma ameaça gigantesca, conseguimos fazer mudanças rápidas e de fundo no nosso modo de vida de forma a enfrentá-la.
A dificuldade é que é infinitamente mais fácil (se não mesmo obrigatório) aos governos efetuar mudanças de grande alcance ao nosso modo de vida por forma a evitar grande perda de vida no momento presente — do que introduzir mudanças deliberadas na economia para impedir, ao que tudo indica, danos muito maiores daqui a 10, 20 ou 30 anos.
Todavia, é em tempo de crise que as ideias que anteriormente pareciam politicamente impossíveis ou consideradas impraticáveis se tornam endencialmente óbvias, se não essenciais. Num artigo publicado em 5 de abril de 2020 intitulado, “Vírus põe a descoberto a fragilidade do contrato social”, o Financial Times escrevia, “...reformas radicais — a inverter a política prevalecente das últimas quatro décadas — terão de ser colocadas na mesa. Os governos terão de aceitar um papel mais ativo na economia.”
É bastante surpreendente ler isto num jornal que tipicamente defende o mercado livre e o poder do mundo empresarial na resolução de problemas.
O diretor do FT, Lionel Barber, afirmou recentemente: O modelo liberal-capitalista tem proporcionado paz, prosperidade e progresso tecnológico nos últimos 50 anos, reduzindo dramaticamente níveis de pobreza e aumentado elevados níveis de vida à volta do mundo. Mas, desde a década da crise financeira global, o modelo tem vindo a ser questionado, particularmente o enfoque na maximização dos lucros e no valor dos acionistas. Estes princípios empresariais são necessários, mas não suficientes. É tempo de uma redefinição, de um ‘reset’.
Assim, num contexto de assegurar que não destruímos os sistemas naturais de que dependemos para a nossa existência, que tipos de políticas poderemos agora considerar? Qual o aspeto deste reset?
Kate Raworth, uma economista e Senior Research Associate na Universidade de Oxford tem encabeçado a ideia de uma nova mentalidade económica necessária para abordar os desafios sociais e ecológicos do século XXI. No seu livro, ‘Doughnut Economics’, explica a necessidade de estabelecermos limites sociais e planetários — essencialmente um painel de controlo que assegure que a atividade humana não esteja a caminho da autodestruição.
Na vertente social, a autora enumera as fundações de uma sociedade saudável, justa e próspera: educação, saúde, alimentos, água, energia, infraestruturas, habitação, igualdade de géneros, equidade social, voz política, paz e justiça e rendimento e trabalho. Em termos ambientais, recomenda nove indicadores-chave — alterações climáticas, diminuição da camada de ozono, poluição do ar, perda de biodiversidade, uso do solo, recurso às reservas de água doce, concentração de nitrogénio e fósforo, poluição química e acidificação dos oceanos.
Em relação a estes, traça se estamos a ultrapassar qualquer um deles, isto é, se a atividade humana está a caminhar para além da capacidade do planeta e a causar níveis insustentáveis de degradação ambiental.
A sua poderosa ‘doughnut infographic’1 demonstra claramente que a velha estória de como avançar a civilização humana, enquanto que muitíssimo eficaz, já não é suficiente. Precisamos de uma estória nova, com uma lúcida compreensão sobre os limites da atividade humana.
Acredito que este seja um conceito que — caso seja adotado pelos decisores — poderá levar-nos a desenhar uma economia mais saudável, mais resiliente e menos destrutiva.
Não se trata apenas de ideias bonitas. Na semana passada, a cidade de Amsterdão adotou formalmente o modelo ‘doughnut’ como ponto de partida para as decisões de políticas públicas. “Julgo que nos poderá ajudar a ultrapassar os efeitos da crise”, disse a presidente de câmara adjunta, Marieke van Doorninck, “para que não continuemos com a mesma estrutura que usávamos antes.”
O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, afirmou, “não poderemos de todo voltar para o ponto onde estávamos antes do despoletar do Covid-19, com a sociedade desnecessariamente vulnerável a crises. Estamos na altura certa para redobrarmos os nossos esforços para construir economias e sociedades mais inclusivas e resilientes, face a pandemias, às alterações climáticas e a outros desafios mundiais. A recuperação tem de caminhar para uma economia diferente.” Na sua Carta Pascal o Papa Francisco escreveu,
“talvez esteja na altura para considerar um salário básico universal” – uma medida que o Governo espanhol está ativamente a considerar atualmente. Somos capazes de fazer o que é necessário quando urge fazê-lo.
Existe um consenso alargado que a maneira como as coisas funcionam, atualmente, não funcionam suficientemente bem para suficientes pessoas ou para o planeta.
A mudança é possível, está em curso, e — a ciência é clara — se não mudarmos, e rapidamente, então a mudança ser-nos-á imposta pela quebra acelerada dos sistemas de suporte de vida da terra, os mesmos que atualmente alicerçam todos os aspetos da nossa vida.
Passei os primeiros dez anos da minha carreira no Reino Unido. Trabalhei primeiro como consultor a ajudar grandes organizações a tornarem-se mais eficientes, mas fiquei desiludido pelas empresas que estavam no cerne da economia não estarem focalizadas nos grandes desafios do nosso tempo.
A crise ambiental e as alterações climáticas eram consideradas assuntos secundários, a serem tratados pelas equipas de responsabilidade social corporativa. Depois disso, abandonei esse trabalho para começar uma empresa chamada Escape the City cuja missão é a de ajudar pessoas a encontrarem trabalho com significado em empresas responsáveis que procuram ativamente serem parte da solução. Sinto alívio ao constatar que, nestes anos desde que deixei o mundo corporativo e mergulhei em startups, procurando melhorar as coisas, a cultura empresarial mudou dramaticamente.
Sim, ainda temos de mudar os nossos sistemas, as nossa regras e as nossas economias de modo a termos em linha de conta os limites planetários — mas primeiro temos de afirmar os nossos valores, precisamos de uma cultura que saiba dizer basta — e a partir daqui poderemos interrogar-nos quais as inovações e regulamentação necessárias para construir um mundo verdadeiramente sustentável.
Embora não tenhamos ainda alterado a nossa trajetória destrutiva, sinto alívio ao ver esta mudança de cultura a ser interiorizada de forma transversal na economia. Investimentos em combustíveis fósseis são cada vez mais considerados socialmente inaceitáveis. Os políticos (com algumas tristes exceções) e líderes empresariais aceitam que encaramos uma ameaça ambiental gigantesca que requer cooperação global. Empreendedorismo social era uma designação de nicho para uma organização com fins lucrativos que resolvia problemas sociais ou ambientais. Hoje, todas as organizações credíveis sabem que têm de ser, de alguma forma, empreendedores sociais.
Quando voltei para começar a trabalhar na nossa empresa familiar em 2017, estava um pouco apreensivo por achar que talvez estaria a entrar numa empresa tradicional que ‘não percebia’. Não precisava de me ter preocupado.
Entrei numa empresa onde os meus colegas e a minha família compreendem plenamente a magnitude do desafio e na qual — efetivamente — há já longa data se desenvolviam iniciativas para proteger a biodiversidade, o apoio à comunidade local, a redução das emissões de carbono e a adaptação às alterações climáticas na vinha.
Sabemos que não conseguimos prosperar como empresa e como equipa se não cuidarmos da saúde e do bem-estar do ambiente, do clima e das comunidades onde trabalhamos.
Em 2019 fomos a primeira empresa de vinhos em Portugal a tornar-se uma B Corporation, juntando-se a um movimento global de empresas comprometidas em atingir os mais elevados padrões de desempenho — mensurável — ambiental e social, além de práticas empresariais responsáveis e éticas. Mudámos os nossos estatutos legais de modo a assegurar que a nossa administração coloque as considerações sociais e ambientais em pé de igualdade com as financeiras.
Aderimos à International Wineries for Climate Action, que nos compromete a cumprir metas cientificamente balizadas de redução de CO2 nos próximos anos. Somos parceiros para o longo prazo da Rewilding Portugal, uma organização pioneira com uma ambiciosa estratégia de conservação da natureza no vale do Côa.
Contudo, sabemos que não podemos fazer isto isoladamente — 90% das nossas emissões estão na nossa cadeia de fornecedores, não sob nosso controlo direto e operamos no âmbito de uma economia alargada desenhada para a maximização do crescimento — mesmo à custa da estabilidade ambiental.
Estamos determinados em fazer parte da solução, mas sabemos que a solução é maior do que nós. Compreendemos que o consumo excessivo e a prossecução do crescimento ‘a qualquer custo’ são parte do problema. Estamos comprometidos em sermos uma força para a moderação, a sustentabilidade, a resiliência e para a proteção do belo ambiente natural que herdámos e do qual esperamos que os nossos filhos possam beneficiar.
Iniciei este artigo com a interrogação sobre o que poderíamos fazer mais para evitar a destruição ambiental e contribuir para a construção de um mundo verdadeiramente sustentável. Acredito que as causas do momento de apuro em que nos encontramos são sistémicas — estão incorporadas na economia e não serão resolvidas por vocês ou eu trocarmos para lâmpadas de baixo consumo, comermos menos carne, ou conduzirmos carros elétricos. Se as causas são sistémicas, então as soluções devem também vir pela reforma desses sistemas — pela liderança de governos em parceria com o mundo empresarial.
O que podemos cada um de nós fazer, na nossa esfera de atividade e influência? Creio que cada um deve ser uma força positiva para a mudança de cultura, ser alguém que diga, “tem que haver uma maneira melhor de fazer as coisas” e, “vale a pena proteger o nosso planeta”, e compete à nossa geração — unida — fazer absolutamente tudo para o proteger.
Temos de ter a coragem de nos fazermos ouvir. Temos de votar em políticos que levem a sério a crise do planeta e que têm planos credíveis, viáveis e arrojados. Temos de comprar das companhias que estão na dianteira duma nova economia que opera dentro dos limites dos sistemas da terra. Temos de ser uma força de mudança ambiciosa dentro das nossas organizações — seja na qualidade de empresários, fundadores ou colaboradores — usando as nossas vozes para exigir mudança e os nossos talentos para conceber soluções para os problemas que partilhamos.
E se a interrupção no ‘business as usual’ provocada pelo coronavírus contribuir para uma reavaliação coletiva sobre o que realmente importa e uma abertura para novas e arrojadas politicas sociais e ambientais — apoiadas por uma aliança alargada de governo e tecido empresarial — então algo verdadeiramente proveitoso terá saído de toda a dor, perda e perturbação que as nossas comunidades estão a viver.
Rob Symington
Associate Director na Symington Family Estates