Com as vacinações a aumentar em muitos países, começamos a imaginar um regresso pós-pandémico à normalidade. A única questão parece ser quanto tempo vai demorar. No entanto, apesar dos progressos alcançados com as vacinas, a verdade é que a abordagem atual não vai derrotar verdadeiramente o coronavírus.
O problema de base está na forma como a vacina está a ser distribuída em todo o mundo: não onde há mais necessidade, mas onde há mais dinheiro. Os países mais ricos já pagaram centenas de milhões de doses, muito mais do que aquilo de que realmente precisam. O Canadá, por exemplo, já encomendou o suficiente para vacinar cinco vezes os seus 38 milhões de residentes. Os países ricos constituem 16% da população mundial, no entanto, asseguraram quase 60% do fornecimento mundial de vacinas.
Desde o início da pandemia, Bill e Melinda Gates têm apelado a que as nações ricas se lembrem que a covid-19 é uma ameaça em todo o lado. Na sua comunicação anual, salientaram que os países de rendimentos baixos e médios poderão vacinar apenas 20% da sua população em 2021.
Até que as vacinas cheguem a todos, o vírus permanecerá e continuará em mutação e a aumentar em todo o mundo. Isto é alarmante e deve preocupar-nos a todos.
Mas o problema vai muito além da saúde pública. A Câmara Internacional de Comércio lançou um estudo que mostra que a vacinação assimétrica no mundo pode causar perdas económicas globais que podem atingir os 9 triliões de dólares. O estudo conclui que a economia mundial está tão interligada que deixar grandes áreas com a covid-19 resultará em perdas por todo o planeta. De facto, 53% das perdas económicas globais da pandemia, em 2021, serão suportadas pelas economias avançadas, mesmo que estas atinjam 100% de vacinação nos seus próprios países.
Apesar de todos estes argumentos económicos, o “nacionalismo vacinal” está, de facto, a aumentar. As nações europeias ameaçaram restringir as exportações de vacinas e tomar medidas legais contra a AstraZeneca devido a suspeitas de que esta deu prioridade à entrega de vacinas à Grã-Bretanha em detrimento dos países da UE. Dezenas de diferentes países também restringiram as exportações de produtos médicos, o que dificulta os esforços para erradicar a covid-19 em todo o mundo.
É compreensível que os países ricos queiram vacinar primeiro as suas próprias populações. Mas deve haver uma forma de agir racionalmente sem acumular vacinas e de assegurar que a doença seja erradicada mais rapidamente em todo o mundo.
Com uma pandemia em rápida mutação, ninguém está seguro, a menos que todos estejam seguros.
Na ausência de um compromisso internacional, os governos recorrem a uma abordagem “o meu país primeiro”, com consequências de grande alcance. Sem coordenação global, os países podem licitar uns contra os outros, fazendo subir o preço das vacinas e materiais relacionados. O fornecimento de vacinas será inicialmente limitado, mesmo em alguns países ricos, mas o maior prejuízo será nos países de rendimento baixo e médio, que serão forçados a esperar meses ou mais. Entretanto, os trabalhadores da saúde e milhares de milhões de idosos e outros habitantes de alto risco nos países mais pobres ficarão desprotegidos, o que prolongará a pandemia, aumentará o seu número de mortes, e colocará em perigo os seus já frágeis sistemas de saúde e economias.
Ao mesmo tempo, na sua busca para obter vacinas, esses países procurarão qualquer forma de alavancagem que possam encontrar, incluindo o bloqueio das exportações de componentes críticos das vacinas, o que levará à quebra das cadeias de abastecimento de ingredientes crus, seringas e frascos. O resultado será não só dificuldades económicas e humanitárias desnecessárias, mas também um ressentimento intenso contra os países que acumulam vacinas, o que porá em perigo o tipo de cooperação internacional necessária para enfrentar futuros surtos – para não mencionar outros desafios prementes, tais como as alterações climáticas e a proliferação nuclear.
A cooperação global na atribuição de vacinas seria a forma mais eficiente de impedir a propagação do vírus. Também estimularia as economias, evitaria perturbações na cadeia de abastecimento e evitaria conflitos geopolíticos desnecessários.
Contudo, se todos os outros países fabricantes de vacinas estiverem a ser nacionalistas, ninguém terá um incentivo para cooperar.
Tal cooperação continua, no entanto, a ser possível. Não é demasiado tarde para que a cooperação global prevaleça sobre as disfunções globais, mas exigirá que os Estados e os seus líderes políticos mudem de rumo. E já existe um esforço global para ajudar os países em desenvolvimento: COVAX, uma colaboração global para acelerar o desenvolvimento, fabrico e distribuição equitativa de novas vacinas para todos os países do mundo. Donald Trump recusou-se a aderir à COVAX apesar da participação de mais de 118 nações, mas Biden inverteu essa decisão.
Todos queremos regressar à forma como as coisas eram antes da covid-19.
Mas, como Bill Gates avisou, há uma área na qual nunca devemos retroceder: a nossa complacência. A ameaça da próxima pandemia estará sempre a pairar sobre as nossas cabeças, a menos que tomemos medidas para a evitar. O mundo precisa de reforçar os investimentos em I&D para desenvolver, produzir, distribuir, e entregar vacinas. Para parar a próxima pandemia será necessário gastar dezenas de milhares de milhões de euros. Este é um grande investimento. Mas o mundo precisa de gastar milhares de milhões para poupar triliões (e evitar milhões de mortes). Esta é a apólice de seguro mais rentável que o mundo poderia comprar.
Ao escrever estas linhas finais (19 de fevereiro), ouvi a notícia de que os líderes do G7 aumentaram as suas promessas à iniciativa global de vacinas COVAX para 7,5 mil milhões de dólares e concordaram em partilhar os excedentes de vacinas com o mundo em desenvolvimento. E o líder dos EUA, Joe Biden, prometeu mais 4 mil milhões de dólares para a COVAX, com 2 mil milhões de dólares a serem pagos imediatamente.
As vozes que reivindicam uma abordagem global das vacinas já não caem em ouvidos moucos. Parece terem tocado a consciência dos líderes dos países mais poderosos. No entanto, como em compromissos globais anteriores, resta saber quanto da retórica se materializará em ajuda real no terreno. Mas, sem dúvida, estas são boas notícias para o mundo.
Artigo publicado a 3 de março 2021, no Jornal de Negócios.