"O futuro [da moda] passa por modelos de negócio diferenciadores"
Ana Roncha, diretora do programa de Marketing Estratégico de Moda da London College of Fashion e docente convidada do programa de Gestão de Negócios de Moda da Porto Business School defende que perante o crescimento e aumento da competitividade no setor “há necessidade de repensar os modelos de negócio [...] e que o espaço para crescer deve vir de modelos de negócio diferenciadores e de outras propostas de valor que não fatores como o custo.
Na última década o setor da moda em Portugal tem vindo a crescer anualmente, fruto da inovação [no design e nos processos] e da qualidade dos seus produtos. Os maiores exemplos desta evolução são os dos setores do vestuário e calçado. Na sua opinião o que motivou esta inversão positiva?
[AR] Acima de tudo, penso que a mudança se deveu a uma estratégica concertada das associações com as empresas e à crescente aposta na visibilidade exterior, o que originou o crescimento das exportações. Existe uma maior consciência e formação por parte da nova geração de empresários, que trazem novas referências e dinâmicas para o contexto português.
Além disso considero que existe outro fator que teve influência: podemos aliar esta evolução positiva com uma maior atenção e procura dos consumidores estrangeiros, e não só, de marcas com propostas diferenciadas e não massificadas. Existe um movimento, maioritariamente nos mercados estabilizados, que cresceu por oposição ao “fast fashion” e que procura produtos de maior qualidade, durabilidade e diferenciadores. Penso que beneficiamos […] desta tendência do consumidor em descobrir novas marcas e que respondam mais eficazmente aos seus estilos de vida.
Há ainda espaço para crescer mais?
[AR] Sem dúvida. A nossa capacidade produtiva é inegável. Mas a marca “made in Portugal” e por consequência as nossas marcas deste setor têm ainda um caminho a percorrer. Está visivelmente mais reforçada do que há alguns anos atrás, mas no setor da moda ainda não atingiu a sua capacidade máxima. A forma de crescer, a meu ver, passa pela criação de estruturas de apoio à criação e gestão de marcas, nas suas variadas fases.
Atualmente e neste setor, as missões empresariais no seu formato tradicional não fazem tanto sentido. A economia digital permite-nos aceder a mercados globais instantaneamente e, portanto, há que dotar as marcas e os seus profissionais de outras ferramentas e, acima de tudo, de conhecimento aprofundado sobre o mercado global, de referências, contatos, networks, relações públicas, etc.
Os modelos de negócio dos grandes grupos neste setor são hoje, na minha opinião, quase impossíveis de replicar. O mercado mudou, os consumidores mudaram e o que assistimos é à tendência para as marcas de dimensão mais pequena serem adquiridas por esses grandes grupos, como forma de aumentar quotas de mercado, reforçar a aposta e cobrir segmentos de mercado que estão em crescimento.
Como tal, o espaço para crescer deve vir de modelos de negócio diferenciadores e de outras propostas de valor que não fatores como o custo, por exemplo.
Tem vindo a colaborar com grandes marcas nacionais e internacionais. Existem grandes diferenças na gestão destas marcas?
[AR] Existem, sem dúvida. A grande diferença prende-se com a prioridade e valorização que é dada ao marketing e comunicação e à gestão da marca como uma entidade criadora de valor. Essa é, para mim, a base diferencial entre as duas realidades. A extrema profissionalização desta área no mercado internacional faz com que as empresas tenham estruturas e recursos capazes de criar valor constante e apostar na valorização e exposição da marca – o que nem sempre se traduz num retorno imediato e/ou mensurável.
Existem diferenças também ao nível da estrutura organizacional. Modelos e formatos de trabalho menos rígidos e menos convencionais – que valorizam e fomentam a criatividade e a criação de redes de contactos, a mobilidade, a gestão de processos de inovação etc. No fundo, uma forma de trabalhar que assenta mais em princípios colaborativos e com maior foco no futuro e em preparar e prever esse mesmo futuro, por oposição à resposta ao presente/curto prazo.
Além disso não existe tanto o medo do erro, do falhar. Valoriza-se a tentativa e a aprendizagem interna e dá-se espaço e liberdade para a realização de projetos mais especulativos, com destaque para a investigação e tempo para essa mesma investigação e que, muitas vezes, acabam por se tornar em produtos e processos com alto retorno.
Qual o impacto que a industria 4.0 terá no futuro do retalho?
[AR] Nesta área podemos falar do impacto da Industria 4.0, mas acima de tudo do impacto da 4a Revolução Industrial.
Relativamente à primeira, pela automatização de sistemas e tecnologias, as empresas criam networks inteligentes que controlam toda a cadeia de valor e são auto suficientes nos processos produtivos. Existe muito medo e preconceito relativamente à perda de postos de trabalho […] que deixam de ser feitos por humanos para passar a ser feitos por máquinas. Mas fruto disto existe todo uma parafernália de profissões que foram criadas para responder a estes novos processos e desafios.
Dentro desta discussão da 4a Revolução Industrial devemos englobar a transformação sistémica que estamos a assistir ao nível da sociedade, estruturas de gestão e regulamentação, a análise do impacto da tecnologia e consciencialização de “novo consumidor”. São implicações bem mais abrangentes que a Industria 4.0.
Vejamos: estamos a falar de uma mudança radical ao nível do comportamento do consumidor que procura e exige novas propostas de valor, que exige responsabilização às marcas ao nível da sustentabilidade e responsabilidade social […] e tudo isto leva a que se gerem novos modelos de negócios e a que esta indústria tenha que responder em conformidade.
Qual o impacto que as mudanças do comportamento do consumidor podem ter na indústria de moda e lifestyle?
[AR] O impacto é bastante acentuado. O consumidor atual rege-se por expectativas elevadíssimas, que se transmitem de categoria para categoria. Esperamos elevada qualidade e rapidez por parte do serviço ao cliente em qualquer compra, seja ela de 100 ou 1000 euros.
Trata-se de algo que se tornou um dado adquirido, fruto da transferência de expectativas perante as marcas e os retalhistas. Estamos mais dispostos a interagir com as marcas e a entrar num diálogo – ajudando-as a crescer e funcionando como embaixadores. Exigimos experiências em todos os “touch points” online e offline, procuramos marcas que valorizem e ofereçam esta experiência muito acima do produto.
A capacidade de adaptação a esta nova realidade é a adaptação a um setor cada vez mais competitivo – mais marcas, mais canais, mais ruído. Como tal, há necessidade de repensar os modelos de negócio que operam, a cadeia de valor, a forma como desenham as suas narrativas e interação com consumidores.
Na sua perspetiva quais serão os grandes desafios de futuro para o setor da moda?
[AR] Penso que posso focar 3 fatores:
Domínio do conhecimento sobre o consumidor - Conhecer e criar propostas de valor para este novo consumidor.
Fusão do online com offline. No fundo a consciencialização que não interagimos com canais, mas sim com marcas. Esta capacidade de tornar a tecnologia simples, “sem espinhas”, integrada e adaptada às nossas vivências diárias. A tecnologia não é nem deverá ser mais do que uma ferramenta. As inovações/introdução de digital puramente "porque sim" não têm uma perspetiva de longo prazo. A estratégia digital de marcas deve ser algo holístico, algo que abrace a organização como um todo e que coloque o consumidor em primeiro plano.
A tecnologia deve ser usada tendo por base o facilitar e agilizar as opções do consumidor e ajudar as marcas a prever comportamentos e opções. Ter uma correta perceção da “consumer journey” e dos vários touchpoints ajuda a gerir e entender a relevância da marca em cada um deles e a criar formas de interação que facilitem a integração dos variados canais, numa estrutura verdadeiramente omnichannel.
O big data. Entender bem o impacto do big data e o que isso nos permite atingir relativamente a conhecer em detalhe o consumidor e as suas opções. As potencialidades que isto abre para personalizar a experiência de compra são enormes, potencia a interação acrescida com as assistentes de loja e acelera a capacidade de oferecer uma comunicação e serviço mais personalizado. Integrar redes sociais, gestão de tendências, gestão de relacionamento do consumidor […] são consequências, mas, acima de tudo, oportunidades a aproveitar sem dúvida.
A formação [e a formação contínua], ao nível da gestão já é prática no setor ou ainda há muito a fazer?
[AR] Há um longo caminho a percorrer ao nível da formação especializada para esta área em Portugal. O que acontece na maior parte dos países onde trabalhei e entidades com as quais colaboro é uma oferta formativa específica para este sector, como Marketing estratégico de moda, Gestão de empresas de moda, etc.
O mercado está preparado para absorver estes profissionais e […] existe um conhecimento base específico para esta área e uma valorização das empresas em contratar estes profissionais, precisamente pela sua capacidade de juntar a linguagem dos negócios com a da moda.
Penso que em Portugal há uma tendência para nos focarmos demasiado no design […] em noções aprofundadas de negócio e das ferramentas de gestão específicas para esta área. Obviamente que um bom produto deverá ser a base de qualquer marca, mas posso enumerar umas quantas marcas bem-sucedidas que não assentam neste princípio e vice-versa – excelentes designers e equipas criativas que simplesmente não têm visibilidade. Daí ter a convicção que o que nos falta é formação que permita competir e promover de forma sustentada as nossas vantagens competitivas e atingir um posicionamento elevado no mercado global.
As vantagens para o tecido empresarial português são inúmeras. Esta indústria é muito volátil, requer atualização constante dos conhecimentos, e domínio de todos os fatores intangíveis e, acima de tudo, uma capacidade imensa de inovar na gestão e coordenação de variados profissionais. Não quero com isto dizer que em Portugal não existam empresas que funcionam extremamente bem ao nível da gestão. O que me parece fulcral é a consciencialização da importância de outro tipo de profissionais especializados em moda – gestores de marca, marketing e comunicação, gestores de inovação e estratégia etc. – a sua inclusão na estrutura das empresas e capacidade de decisão.
Reforço sem dúvida a necessidade de criar formação especializada para a indústria da moda. A inserção destas formações numa escola de negócios como a PBS parece-me ser a junção ideal. Além disso, fulcral é a noção que estamos a criar negócios globais, sem fronteiras e, portanto, as nossas referências, concorrentes e consumidores são também globais. Esta visão holística do sector deve ser a base de qualquer formação.