Caro concidadão, que está lendo esta crónica no aconchego do seu lar, saturado de isolamento, mas cumprindo escrupulosamente o confinamento imposto. Como vem sendo habitual, o seu filho está fechado no quarto há horas, frente ao computador. Sabe o que ele está a fazer? Há momentos, ouviu tocar a campainha da porta. Tem a certeza de que não é a polícia que vem buscar o seu filho?
Concedo que se trata de forma pouco ortodoxa para iniciar esta crónica. Mas os tempos que se vivem não são normais, não apenas ao nível da propagação do vírus, mas também por tudo aquilo que o tempo de pandemia exponenciou. São múltiplas as ameaças. Mais famílias e indivíduos com problemas financeiros; mais pessoas penduradas na “net”, queimando o tempo que o confinamento não permite gastar no convívio social fora de portas; mais dificuldades até para defraudadores, na introdução no sistema financeiro (legal) dos proventos das fraudes cometidas – a lavagem de dinheiro, como é conhecida –, devido à redução da atividade económica e empresarial e, porventura, ao acréscimo de proventos para lavar, dado o aumento verificado nas fraudes “online” que o tempo pandémico trouxe.
Nos conceitos sobre Gestão de empresas propostos e discutidos nas universidades, tempos ameaçadores são propostos como passíveis de serem férteis em oportunidades. Para todos. O ambiente é ameaçador para os defraudadores, porque não conseguem lavar adequadamente os proventos das suas atividades; mas, olhando à sua volta, eles veem, a olho nu, os imensos recursos humanos ociosos pendurados na “net”, que podem ajudar a desanuviar o ambiente, transformando uma ameaça numa oportunidade. Pura aplicação das teorias da Gestão, tão válida para atividades legais como ilegais.
Apelativos anúncios de trabalho nas principais redes sociais, sobretudo nas que são mais frequentemente utilizadas por jovens, propõem boa remuneração para trabalho “online”, a partir de casa. Quem é que, estando ocioso e, muito principalmente, sofrendo de dificuldades financeiras, não vê nestas propostas solução para os problemas por que passa?
O contacto encriptado, para o endereço proposto no anúncio, permite sorrir a quem o efetua, porque tudo é muito simples. Passa por ajudar alguém a resolver um problema relacionado com uma herança familiar (ou outra qualquer situação digna de ajuda, contada pelo interlocutor), bastando para tanto receber na conta bancária pessoal um dado montante, e direcioná-lo, posteriormente, em bloco ou em partes, para uma ou mais contas bancárias indicadas à partida. Tudo muito simples, uns meros minutos de trabalho, com o aliciante principal de uma dada percentagem do montante recebido na conta ser retida a título de remuneração pelo serviço prestado.
Aparentemente, o tipo de negócio em que ambas as partes ficam felizes. O prestador do serviço – na gíria designado como “mula de dinheiro” –, porque sem grande esforço ganhou uns cobres; o defraudador, porque conseguiu introduzir no circuito financeiro legal uma parte dos seus proventos de origem ilegal. Refere-se “aparentemente”, porque o prestador do serviço acabou de cometer um crime e pode vir a ser punido por isso.
Linda e imaginativa narrativa, pensa o caro concidadão. Mas pensa mal. Infelizmente, a narrativa descreve um tipo de caso real que o tempo de pandemia tem exponenciado. O Financial Times (FT) faz eco desta situação no seu “site”, com base em dados fornecidos pela CIFAS, uma organização britânica sem fins lucrativos que se dedica ao combate e prevenção da fraude e crime financeiro. Segundo tais dados, em 2020, para o Reino Unido, foram detetados cerca de 17.000 casos (suspeitos) de serem mulas de dinheiro (um aumento de 5% relativamente ao ano anterior), em que participam, preponderantemente, indivíduos com idades entre os 21 e os 30 anos.
Para além do ato de lavagem ser um crime, com todas as consequências que daí podem advir para o prestador do serviço, o FT salienta que há indícios de não ser fácil a este abandonar o esquema, pois os defraudadores tendem a exercer algum tipo de coação para que a sua atividade de mula continue a ser exercida. O que só por si, independente das responsabilidades criminais referidas, é deveras assustador.
Não! Não faça isso. Sente-se. Não há vantagem em invadir o quarto do seu filho. Pelo contrário. Mas não deixe de conversar com ele a respeito deste assunto, aproveitando uma ocasião em que se sinta mais calmo.
Artigo publicado a 17 de março 2021, no Expresso.