[artigo publicado originalmente no nº 1 da revista NORTE.AR., em maio de 2020]
"De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo,
Aquela praia extasiada e nua,
Onde me uni ao mar, vento e à lua.”
— Sophia de Mello Breyner Andresen
Haverá pelo menos duas certezas que resultam da pandemia COVID-19:
Por um lado, e apesar de séculos de progresso económico, científico e tecnológico, a nossa vulnerabilidade mantém-se quase inalterada; por outro, a constatação dos limites e fragilidades do planeta Terra – de que esta crise terá sido “wake-up call”. Como reconhecem dezenas de líderes políticos e empresariais, em carta aberta publicada recentemente 1, «nunca enfrentámos tamanho desafio em tempo de paz», sendo esta “uma oportunidade para repensar a nossa sociedade e desenvolver um novo modelo de prosperidade.” Paralelamente, foi também uma oportunidade para provarmos a nós próprios que somos capazes de mobilizações coletivas rápidas e com impacto à escala global.
Para o filósofo francês Bruno Latour 2, estaremos a assistir ao “ensaio geral para a mudança climática que se aproxima”, que será a próxima crise a alterar profundamente as nossas condições e estilos de vida atuais. Ambas as crises têm origem nos impactos provocados pelo nosso modelo de desenvolvimento, contudo, haverá três diferenças essenciais entre elas: no caso das alterações climáticas, o elemento patogénico somos nós e os impactos nas nossas vidas serão perenes, porém, mais lentos e graduais.
A pandemia COVID-19 resulta de uma mistura de processos naturais, económicos e culturais, que obrigam a humanidade a questionar-se a si própria. O filósofo Slavoj Zizek3 aponta o dedo à atual ordem liberal-capitalista e teme que seja mais fácil mobilizar a humanidade para combater um inimigo externo e passageiro do que a mobilizar para se questionar e mudar a si própria.
Uma coisa é certa: dada a finitude do planeta, e por muito circulares que as nossas economias e sociedades possam ser, não será matematicamente possível proporcionar a 10 mil milhões de habitantes do planeta Terra (em 2050) os níveis de bem-estar material de que atualmente gozam as nossas sociedades mais afluentes. Para tal, seria necessário aumentar o produto mundial bruto em, pelo menos, quatro vezes – o que ultrapassa em muito a capacidade de carga da biosfera, mesmo tendo muita esperança no progresso científico-tecnológico e no alcance da economia circular. Neste momento, já excedemos em muito a capacidade de carga da Terra ao nível do uso de recursos naturais, da poluição e emissão de gases com efeito de estufa, e da produção de resíduos.
Assim, o desafio é sermos capazes de encontrar novos modos de vida e novos conceitos de progresso, que possam constituir uma verdadeira mudança de paradigma. Uma mudança disruptiva, não linear. Como defendia o filósofo Thomas Kuhn4, a ciência e o progresso não acontecem por via de uma sucessão linear de conceitos, mas sim através de uma sucessão de “peaceful interludes punctuated by intellectually violent revolutions… in each of which one conceptual world view is replaced by another...”.
Perante a emergência alarmante de crises ambientais e sociais complexas e sistémicas – pandemias, perda de biodiversidade, emergência climática e poluição, bem como inúmeras manifestações de pobreza e exclusão social –, impõem-se respostas coletivas, integradas e disruptivas. Quanto mais não seja porque todos esses fenómenos estão interligados entre si: Jane Goodall é perentória em atribuir à nossa falta de respeito pela natureza uma das principais causas da COVID-19 5; o aquecimento global acelera a emergência e propagação de novas viroses; a poluição torna-nos mais vulneráveis a elas; e, no seu conjunto, a degradação do ambiente e do capital natural aumenta a pobreza e a exclusão social – o que fragiliza as democracias liberais.
Sendo o Homo Sapiens uma espécie tão antiga e que (supostamente) se distingue das demais pela sua inteligência, uma das questões que se coloca é como foi possível em apenas dois ou três séculos provocarmos desequilíbrios de tal magnitude que podem não ter retorno.
A nossa história começa há cerca de 500 milhões de anos, altura em que se começaram a formar diversos organismos multicelulares. Os primeiros hominídeos apareceram há 7 milhões de anos, há 4 milhões começaram a andar na vertical e há 2,5 milhões a usar as suas faculdades intelectuais e motoras para fabricar ferramentas rudimentares de pedra. Eric D. Beinhocker 6 sugere que é então que começa a economia. Um milhão de anos depois é descoberto o fogo.
Já o Homo Sapiens moderno tem apenas 130-150 mil anos e o crescimento económico só começa a acelerar há 10 mil anos, com o início da Revolução Agrícola, descolando com a Revolução Industrial (1750) e, sobretudo, na segunda metade do século XX.
Adotando como momento zero o aparecimento do Homo Sapiens, 97% da riqueza produzida pela Humanidade foi produzida em apenas 0,15% da sua história, isto é, entre 1750 e 2000. Só assim foi possível que uma população mundial composta por apenas mil milhões de pessoas em 1800, crescesse para três mil milhões em 1960, quase oito mil milhões hoje e, muito provavelmente, 10 mil milhões em 2050 – num planeta que continuará sempre a ser finito!
Ao longo do século XX, o PIB mundial cresceu mais de 20 vezes e a esperança média de vida passou de 29 para 73 anos (em 2019). Apesar do acentuado aumento da população, hoje vivemos com melhor qualidade de vida do que os membros da realeza há 200 ou 300 anos. Porém, o crescimento drástico da produção e da riqueza que o permitiu teve impactos devastadores na biosfera e no meio ambiente.
O atual ritmo de extinção de espécies é mil vezes superior ao que era antes da Revolução Industrial. A este ritmo, até ao final do século perderemos metade das espécies atualmente vivas. Como defendia o ambientalista Norman Myers, estamos na iminência de um “holocausto biótico, que poderá empobrecer o planeta pelo menos durante os próximos 5 milhões de anos.”
Será importante recordar que, nos últimos 500 milhões de anos, houve cinco extinções massivas, a mais recente há 65 milhões de anos, causada muito provavelmente pelo impacto de um meteorito com a Terra, eliminando os dinossauros e muitas outras famílias de animais e plantas. A diferença desta, em que estamos a entrar, para as cinco anteriores, é que desta vez – e pela primeira vez! – somos nós a causa.
Para não recuarmos muito no tempo, consumo global de recursos naturais, muitos dos quais não renováveis, mais do que triplicou desde a década de 1970, tendo atingido os 92,1 mil milhões de toneladas em 2017 7. Porquê? Porque quase todos os nossos bens de consumo incorporam vários tipos de capital natural – seja um telemóvel, um automóvel, uma casa, uma cadeira, um “tupperware”, uma peça de roupa, um medicamento ou um alimento.
Obviamente, estamos a consumir capital natural a um ritmo muito superior à sua capacidade de regeneração. Este ano, o Overshoot Day, isto é, o dia do ano a partir do qual vivemos a crédito das gerações futuras, será atingido no dia 29 de julho (o de Portugal será no dia 25 de maio). Nunca foi tão cedo. Seriam necessários dois planetas Terra para podermos manter o nosso modelo de desenvolvimento atual – profundamente linear –, e os nossos estilos de vida atuais – profundamente materialistas e consumistas.
Os primeiros sinais de alerta chegaram em meados do século passado, quando se começaram a sentir os impactos ambientais provocados pela grande aceleração económica, nomeadamente, em livros e artigos científicos, tais como:
“SILENT SPRING” — DE RACHEL CARSON (1962)
“THE TRAGEDY OF THE COMMONS” — GARRETH HARDIN (1968)
“THE LIMITS TO GROWTH” — CASAL MEADOWS (1972)
“A BLUEPRINT FOR SURVIVAL” — EDWARD GOLDSMITH (1972)
“SMALL IS BEAUTIFULL” — E. F. SCHUMACHER (1973)
É também por essa altura, na UN Conference on the Human Environment (1972), que o conceito de desenvolvimento sustentável é reconhecido, ainda que só se torne popular 15 anos depois, na sequência do relatório “Our Common Future” (1987), encomendado pelas Nações Unidas à ex-primeira ministra da Noruega, Gro Brundtland. Uma das virtudes desse relatório foi estabilizar a definição de desenvolvimento sustentável, como sendo “aquele que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a capacidade de as gerações futuras satisfazerem as suas próprias necessidades.” É extraordinário que algo tão óbvio – quer do ponto de vista intelectual, quer do ponto de vista intuitivo e afetivo – tenha demorado tanto tempo a ser assumido oficialmente (e possa ainda não ser totalmente consensual).
Mais de cem anos antes, em 1854, a carta que o grande chefe índio Seattle escreve ao presidente dos EUA, Franklin Pierce, em resposta a uma oferta-ultimato que este lhe fez de compra das suas terras, é de uma clarividência assustadora. Vejamos algumas passagens:
“Cada clareira e cada inseto que zumbe é sagrado para a memória e para a consciência do meu povo. Fazemos parte da terra e ela faz parte de nós. Esta água cintilante que desce dos ribeiros e dos rios não é apenas água; é o sangue dos nossos antepassados.”
“Se vos vendêssemos a nossa terra, teríeis de recordar e de ensinar aos vossos filhos que os rios são nossos irmãos e também seus. E é por isso que devem tratá-los com a mesma doçura com que se trata um irmão. Sabemos que o homem branco não percebe a nossa maneira de ser. Para ele um pedaço de terra é igual a um outro pedaço de terra, pois não a vê como irmã, mas como inimiga. Depois de ela ser sua, despreza-a e segue o seu caminho.”
“Quando o último pele-vermelha tiver desaparecido desta terra, quando a sua sombra não for mais do que uma lembrança, como a de uma nuvem que passa pela pradaria, mesmo então estes ribeiros e estes bosques estarão povoados pelo espírito do meu povo. Porque nós amamos esta terra como uma criança ama o bater do coração da sua mãe.”
“Tudo o que acontece aos animais acontecerá também ao homem. Todas as coisas estão ligadas. Se tudo desaparecer, o homem pode morrer numa grande solidão espiritual. Todas as coisas se interligam. Ensinai aos vossos filhos o que nós ensinamos aos nossos sobre a terra: que a Terra é nossa Mãe e que tudo que lhe acontece a nós acontece.”
“O homem não teceu a trama da vida. Ele é apenas um fio dessa trama. E o que faz a ela fá-lo a si mesmo. Tudo está relacionado entre si como o sangue de uma família. E, se sujardes o vosso leito, uma noite morrereis sufocados pelos vossos excrementos.”
Nos últimos 10 mil anos a humanidade criou civilizações extraordinárias, que transformaram profundamente a nossa forma de viver, mas muitas extinguiram-se prematuramente – em muitos casos, tendo como uma das principais causas de extinção a sobre-exploração dos recursos naturais. Como defendem autores tão diferentes como Spengler (“O Declínio do Ocidente”, 1918) e Alfred Marshall (“Tudo o Que é Sólido se Dissolve no Ar”, 1982), uma civilização ou uma cultura são superorganismos, que se renovam, mas que também adoecem e morrem.
Com a Revolução Industrial, passámos a dominar a biosfera e a provocar alterações profundas nos seus sistemas, mas “tudo se passou muito rapidamente comparado com os ritmos naturais dos sistemas terrestres e da evolução das formas de vida na Terra”8, como alerta Filipe Duarte Santos.
Do ponto de vista filosófico, a Revolução Industrial adotou o Iluminismo como rede de suporte. De natureza racionalista, o Iluminismo propõe a ciência, o conhecimento e o domínio da natureza pela técnica, para assegurar o progresso e “iluminar” o espírito dos homens, libertando-os das trevas e da ignorância.
Como salienta Viriato-Soromenho Marques, “em 1822, o jovem A. Comte dividia a história em duas idades. Depois da ‘idade da conquista’, entrávamos na ‘idade da produção’.
A submissão tecnológica e industrial da Natureza seria capaz de extrair dela todas as recompensas que não tínhamos conseguido obter através de milénios de guerra entre os povos.”9
Há vários mitos análogos ao delírio de A. Comte, desde o de Prometeu, que é condenado por roubar secretamente o fogo a Zeus, com o intuito de o dar aos humanos, conferindo-lhes assim uma capacidade ilimitada de progresso, ao Fausto de Goethe. Símbolo cultural da modernidade, o Fausto relata a tragédia de Fausto, um homem das ciências que, desiludido com a falta de conhecimento de seu tempo, faz um pacto com o demónio Mefistófeles, que o enche com uma energia satânica e uma paixão pela técnica e pelo progresso. Fausto acaba no Inferno. É essa a natureza do pacto.
Contra a perspetiva iluminista da dominação, o sociólogo Zygmunt Bauman exorta-nos a sermos menos “caçadores” e mais “jardineiros” na relação que temos com o mundo.
Para tal, será necessário aceitarmos a nossa fragilidade e compreendermos que pertencemos a um todo maior, a uma “comunidade de vida”, na expressão de Aldo Leopold. Será necessário olharmos para a Terra como São Francisco de Assis nos propõe, no seu “Cântico das Criaturas” – que inspira a segunda Encíclica do Papa Francisco10 –, no qual nos diz que ela “se pode comparar ora a uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma mãe, que nos acolhe nos seus braços”. Há inúmeros autores contemporâneos a fazer críticas ao sistema atual e a propor alternativas. Por exemplo, Yuval Harari, Mariana Mazzucato, Jeffrey Sachs, Naomi Klein, Rutger Bregman, Paul Collier, Paul Manson, entre tantos outros. Simplificando, temos desafios ao nível dos valores, que terão de ser o substrato de uma mudança de paradigma e que terão de encontrar nas instituições de ensino, na arte, nas religiões, nas famílias e noutros veios de transmissão, respostas, e temos desafios ao nível do redesenho das nossas sociedades e sistemas político-económicos.
Sem esquecermos os desafios ao nível dos valores e do redesenho dos sistemas, no curto prazo há iniciativas que deveriam ser prioritárias, tais como:
1 - Recorrer às soluções tecnológicas subjacentes à quarta revolução industrial, nomeadamente, inteligência artificial, nanotecnologia, biotecnologia, robôs, internet das coisas, drones, impressão 3D, entre outras, para acelerar a transição para uma sociedade superinteligente, centrada nas pessoas e no planeta. O que se propõem não é melhorar as capacidades cognitivas, biológicas e físicas do Homo Sapiens, tornando-o um pós-humano ou uma sociedade distópica, semelhante à que foi imaginada por Aldous Huxley (1932), mas sim recorrer à tecnologia para que possamos ser mais humanos e ecológicos;
2 - Acelerar a transição para as energias renováveis, que são mais do que suficientes como fonte energética. É fundamental redirecionar os biliões de euros gastos todos os anos a subsidiar os combustíveis fósseis e cobrar pelas emissões de gases com efeito de estufa, de modo a sermos capazes de constituir um fundo global que possa financiar um Green New Deal, capaz de financiar, em larga escala, a reflorestação, a economia circular, e novas infraestruturas industriais e de mobilidade de baixo carbono ou regenerativas. O próprio capital natural e os serviços de ecossistemas, além dos serviços provisionais, como a madeira, a água ou os alimentos, devem passar a ser valorados e, sempre que possível e aplicável, monetizados, de modo a poderem ser pagos e, desse modo, também contribuírem para financiar a transição para um modelo de desenvolvimento sustentável a nível global;
3 - Rever as nossas dietas e sistemas de produção alimentar, no sentido da diminuição da presença dominante de proteína animal e da transição, em larga escala, para modelos de agricultura resilientes e regenerativos;
4 - Acelerar a implementação dos referenciais e compromissos já em vigor, nomeadamente, do Acordo de Paris e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 das Nações Unidas, devendo os países, mais do que nunca, integrar esta agenda nos seus programas de governo, políticas e nos diferentes instrumentos e mecanismos de apoio ao investimento.
Se o confinamento inédito de mais de mil milhões de pessoas, com mais tempo para pensar e sentir o mundo à sua volta, ajudar a um despertar global, então – e apesar da dor! – a COVID-19 valeu a pena. Caso contrário, continuaremos a acelerar em direção a um precipício, à beira do qual emigrar para Marte não será solução. A solução é descobrirmos (ou redescobrimos) a praia extasiada e nua do poema da Sophia. É esse tipo de atitude –de fragilidade e deslumbramento – que o futuro nos pede, que nos poderá salvar. Como sabiamente nos lembra a Bíblia: “O orgulho conduz ao fracasso / A arrogância conduz à queda.”11
João Wengorovius Meneses
Secretário-geral do BCSD Portugal - Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável.
1 www.publico.pt/2020/04/14/mundo/opiniao/recuperacao-verde-1912147
2 https://critinq.wordpress.com/2020/03/26/is-this-a-dress-rehearsal/
3 www.publico.pt/2020/04/12/mun-do/noticia/encontro-samarra-no-vos-usos-velhas-piadas-1911845
4 Thomas Khun, The Structure of Scientific Revolutions, 1962
5 https://nypost.com/2020/04/13/jane-goodall-blames-humans-disrespect-for-animals-for-coronavirus/
6 Eric D. Beinhocker, The Origin of Wealth – Evolution, Complexity, and the Radical Remaking of Economics, 2007
7 The Circularity Gap Report, 2019 – Closing the Circularity Gap in a 9% World. www.circle-economy.com/
8 Filipe Duarte Santos, “Que Futuro?”, 2007
9 Viriato-Soromenho Marques, “Por uma nova habitação da Terra”, Visão, 25 de março de 2020
10 Encíclica “Laudato Si – Sobre o Cuidado da Casa Comum” (2015)
11 Provérbios, 16, 18