O que hoje leva a sociedade a adoecer não é a alienação, a proibição ou a repressão, mas o contrário, o consumo desmedido, o excesso e superficialidade da informação.
Há uma estrutura famosa construída por Marco Cianfanelli em homenagem a um dos maiores líderes mundiais que ilustra, numa analogia proveitosa a este artigo, a organização utópica da sociedade.
Para quem não conhece, trata-se de uma estrutura composta por 50 colunas de aço, com 6,5 e 9 metros de altura, que representam os 27 anos que o líder passou atrás das grades na luta pela igualdade de direitos.
Quando estamos imersos na estrutura, as barras não passam disso mesmo - imponentes colunas de aço - mas, à medida que nos afastamos, o conjunto começa a ganhar forma até ao ponto de, com a devida distância, ser possível perceber a cara de Nelson Mandela no conjunto das mesmas. Assim, esta construção para além da homenagem que presta, representa também a noção de solidariedade traduzida na ideia de um coletivo constituído pela união de muitos.
Esta importância do todo parece ainda estar em isolamento, perdida algures na África do Sul, na cidade de Howick (a sul de Durban), local onde se encontra a obra de arte de Cianfanelli.
O resto mundo tornou-se num lugar desalinhado, onde não encontramos tão facilmente a harmonia entre as estruturas que nos suportam. Pelo contrário, vivemos num mundo de extremos em constante desequilíbrio, tanto por causas naturais como o aquecimento global ou aparecimento de um novo vírus, como pelo estranho regresso aos ideais autocráticos, afirmados nos líderes como Trump ou Bolsonaro e pelas posições protecionistas / nacionalistas que culminam em ações como o Brexit ou ondas de refugiados.
Viver num estado de desequilíbrio pode ser interessante. O equilíbrio constante não faz ninguém evoluir nem inovar. Pelo contrário, há num estado de desequilíbrio, uma certa ordem inerente aos caos, que potencia o nascimento de coisas novas e belas. O problema é que mergulhámos num caos em que, a tensão criativa inerente a este estado, ao invés de servir como desbloqueio e ser aproveitada por líderes e gestores com uma visão clara de um futuro melhor, tem o efeito contrário: parece bloquear e fazer retroceder às práticas que permitem um controlo de poder quase absoluto.
Que o contexto é complexo e que as coisas evoluem mais rápido que nunca, sem dúvida que é um facto. Mas a solução não deve passar por ignorar a sua complexidade e cair no facilitismo dos simplismos e automatismos. Estes “ismos” são precisamente o motor de crescimento das ações mais destrutivas da sociedade nas últimas décadas. Vivemos tempos de extraordinária superficialidade e sofremos coletivamente de uma absoluta incapacidade para pensar.
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A globalização exige a superação das diferenças entre as pessoas, pois quanto mais estas forem idênticas, mais veloz é a circulação do capital, das mercadorias, da informação. A tendência é que se tornem todos semelhantes enquanto consumidores.
O filósofo sul-coreano Byung Chul Han no seu livro “ a sociedade do cansaço” refere que o tempo em que existia o Outro está a passar. O Outro como amigo, o Outro como inferno, o Outro como mistério, o Outro como desejo. O efeito de contraste está a ser substituído por uma imagem espelhada e é esta proliferação daquilo que é “igual”, a noção de que sermos iguais é o que nos faz crescer, que torna o corpo social patológico.
O que hoje leva a sociedade a adoecer não é a alienação, a proibição ou a repressão, mas o contrário, o consumo desmedido, o excesso e superficialidade da informação.
Este pesadelo igualitário traduz-se em fenómenos como o medo e dá origem a movimentos identitários e nacionalistas, a manifestações de terrorismo e abusos de poder, culminando num processo marcado pela depressão e auto-destruição.
E é precisamente este medo e capacidade de opressão camuflada que serve para apregoar a uma liberdade que não o é na sua plenitude. Cada um passa voluntariamente a escravizar-se a si próprio, imaginando que se está a realizar. O sujeito atual conhece apenas dois estados: funcionar ou fracassar. É um traço que se assemelha às máquinas, ou funcionam implacavelmente, ou estão avariadas e descartam-se. Estas formas de funcionamento individualistas geram medo e insegurança.
A receita para combater este estado não é nova nem tem nenhum segredo. Antes de mais, importa adicionar uma boa dose de ética e empatia aos nossos pensamentos e ações e regressar à essência relacional e social do ser humano, enquanto etapa fundamental para atingir a nossa realização e não contrário.
A socialização é fundamental, mas de forma ética, por forma a que nos voltemos a descobrir a partir do Outro. Devemos, com alguma regularidade, relembrar os conceitos mais básicos da antropologia, nomeadamente a capacidade de perceber e aceitar o Outro no seu contexto próprio, renegando à tentação de cair em comparações de superioridade e inferioridade.
Pelo contrário, a capacidade de aceitação e responsabilidade social deve ser regularmente treinada, relembrado que somos todos “produto” de um determinado contexto cultural e que todos acabamos por dizer o mesmo, mas numa linguagem diferente. O exercício aqui é simples: pensar no que as minhas ações sobre o Outro dizem de mim próprio. O que diz sobre mim o facto de eu, perante uma ameaça de crise social e de saúde pública, querer adquirir todos os rolos de papel de um supermercado?
Pode nem parecer relevante o exemplo, mas são precisamente estes “pequenos” exercícios de ética que nos permitem conhecer a nós próprios através da nossa relação com o Outro.
O DERRADEIRO DESAFIO DA SOCIEDADE: O REGRESSO AO BÁSICO / ÀS ORIGENS
O Žižek está sempre a contar a piada sobre um homem que se considera um grão de semente e é internado num hospício, onde os médicos dão o seu melhor para o convencer que ele não é uma semente, mas um ser humano.
Assim que é dado como curado (convencido de que não é um grão de semente, mas um ser humano), é autorizado a sair do internamento, recai e volta a tremer de medo: do lado de fora da porta havia uma galinha e ele tem receio de que esta o coma.
“Caro amigo”, diz o médico, “você sabe muito bem que não é um grão de semente, mas um homem.” “É claro que eu sei disso”, responde o paciente, “mas a galinha saberá?”
Este comportamento é resultado do modelo de sociedade em que as pessoas foram transformadas em clientes, as suas vidas em negócios e em que o mundo entra em crise porque, durante dois meses, somos obrigados a consumir apenas o que precisamos.
Podemos até saber que isso é verdade, mas atuamos como se não o soubéssemos: na nossa vida real procedemos como o sujeito da piada e, na dificuldade de agirmos perante as questões de ética mais complexas, o caminho mais fácil é fingir que é apenas mais um assunto entre os muitos que se noticiam, no meio de um ruído vazio de significado, permitindo que a ética e a empatia não sejam prioridades.
O derradeiro desafio prende-se com um exercício que até parece simples, mas que é das provas mais difíceis da humanidade: trocar a necessidade de gritar mais alto, pela vontade de ouvir melhor; trocar a ambição de ser destacado, pela capacidade de encontrar o Outro no meio da multidão; trocar a falta que sentimos constantemente de criticar, pela importância de nos conhecermos melhor através da realização das nossas diferenças, do que nos caracteriza enquanto pessoas singulares, ainda que parte de um coletivo.
Voltando à analogia com a obra de arte de Cianfanelli em homenagem a Mandela, o desafio da sociedade reside na importância de ter presente que, cada um de nós, representa uma barra de aço imponente e grandiosa em si só, mas que faz parte de uma estrutura maior. Há um significado maior naquilo que representamos enquanto sociedade, que não é a simples soma das partes, dos interesses de cada um. Como referiu Nelson Mandela na sua biografia, é crucial ter sempre presente as nossas origens, as origens da grandeza.
Artigo de Opinião originalmente publicado no Jornal Expresso.