A vida em si, não pode ser separada da sua fragilidade: num dia estamos bem, no dia seguinte somos diagnosticados com algo que vira o nosso mundo do avesso. Mas a nossa postura, o sorriso falso ou a fotografia no Instagram, ainda assim, consegue transparecer o ângulo perfeito. Onde tem lugar a autenticidade nos dias que correm? Desde quando é que o “stay positive” é mais importante que o “stay real”?
Enfim…
Fico sempre espantado, envergonhado e triste quando encontro empresas amarradas a ditaduras plásticas de felicidade com mantras de "people first!" e “corporate hapiness” e depois não têm um contabilista para apoiar as pessoas nas suas finanças pessoais especialmente quando 50% ou mais dos quadros estão altamente endividados e sofrem de iliteracia financeira, ou...
não tem um psiquiatra uma vez por semana, que seja, para as ajudar em problemas mentais e de ansiedade, ou..
não lhes permitem tirar um dia ou uma manhã por mês para respirar ou tratar de assuntos pessoais realmente importantes, ou...
dizem "vais tirar a tarde" quando alguém sai às 18:00 para ir ter com a sua família incrível, ou...
fazem pressões parvas com as licenças de maternidade ou paternidade ou..
marcam reuniões às 18:00 e enviam emails à noite e ao domingo a exigir resposta, ou..
pedem missões impossíveis a equipas subdimensionadas quando comparamos com holandas e dinamarcas, ou...
quando tratam pessoas experientes, inteligentes como se fossem crianças de 5 anos, microgerindo-as, ou...
contratam "amigos" sem experiência para cargos de direcção, ou.. têm 90% de homens em cargos de direcção..ou..
pagam salários do terceiro mundo...ou
despedem quadros com 5, 10 ou 20 anos de casa sem dar tempo para que encontrem outra posição digna da sua experiência e do seu potencial, ou...
não dão formação premium com regularidade por achar que "essas coisas" custam muito dinheiro, ou...
não têm um sistema a sério de gestão de talento e pessoas competentes para o animar ou…
enfim, avancemos para tema do artigo antes que me pare a digestão.
Nem tudo é Burnout…
Quando algo contextual se torna muito referenciado, tudo parece resultar como sua consequência. Percebemos isso atualmente com a pandemia - todos os atrasos, faltas e falhas são culpa da Covid.
É também o caso do bullying – qualquer piada ou brincadeira não consensual se torna caso de bullying quando antes eram apenas crianças a ser crianças. E é o caso do burnout – qualquer má disposição, insatisfação ou incapacidade de lidar com uma determinada situação, é encarada como caso extremo de burnout.
Starobinski afirmou que “antes de serem reconhecidos como estados anormais, certas doenças são apenas uma turbulência do curso habitual da vida, da qual ninguém pensa em separá-las. (…) essas doenças só existem como doenças pela atenção que recebem.” Quando damos nome às coisas, elas tornam-se realidade e quanto mais divulgamos o problema, mais ele se torna conhecido. Faz lembrar a velha história do homem no seu leito de morte que dizia “tive tantos problemas.. a maior parte deles nunca chegou a acontecer…”
Efetivamente, é esse o denominador comum em todos os casos acima mencionados: foi dado um nome “científico” a situações que são do foro natural. Teorias da conspiração à parte, o vírus que nos assola é uma consequência negativa de um ato da natureza; a maioria das brincadeiras menos agradáveis entre crianças são a sua mais pura expressão de inocência e conhecem-se desde sempre; o agora chamado burnout também sempre foi uma inadaptação do ser humano com a sua condição ou estilo de vida e existe desde os primórdios do ser humano (ainda que, no início, não fossemos tão exigentes com essa mesma condição).
Esta abordagem não é taxativa nem visa menosprezar as consequências destes acontecimentos que, quando efetivamente são diagnosticados, são extremamente graves e carecem de tratamento profissional. É, pelo contrário, pôr as coisas em perspetiva e perceber qual a fronteira entre querer ter a “doença da moda” por uma questão de caminho mais fácil e inclusão social e porque torna mais fácil a desresponsabilização de compromissos e o confronto com a realidade de que se calhar não estamos no sítio certo.
O tão aclamado “stress” não é mais do que a incapacidade do ser humano de gerir todas as responsabilidades que aceita e lhe são incutidas, mais ou menos diretamente. Quanto mais nos afastamos do estado natural, mais nos assolam as artificialidades do quotidiano.
Conseguimos identificar “stress” num estado puro do ser humano, aquele que estudamos quando remontamos aos nossos primórdios? Bom, certamente que sim. Com toda a certeza que, quando faltava alimento, quando as condições atmosféricas arrasavam o cultivo ou quando existiam disputas erritoriais, isso devastava psicologicamente os indivíduos e, embora ainda não o soubessem, era stressante.
No entanto, percebe-se nesta comparação temporal, que a grande diferença reside na forma como conseguimos lidar, impor limites em nós e nos outros e ultrapassar as vicissitudes da vida, consoante a naturalidade e a artificialidade dos problemas: se os problemas são do foro natural, a sua resolução será também, mais tarde ou mais cedo, garantida. Se os problemas já estão relacionados com a incapacidade de lidar com os papéis que a sociedade nos impõe, com as dívidas acumuladas ou com a insatisfação material, ou comparações a sua resolução já não é tão fácil nem dada como garantida.
Quanto mais nos esforçamos a ser aquilo (ou aquele) que não somos naturalmente, mais complexas se tornam as nossas batalhas interiores e menos claros se tornam os nossos problemas. Muitas pessoas colocam demasiada pressão em si próprias sem necessidade nenhuma. E muitas outras que estão na sua “zona”, sentem-se úteis, realizadas, gostam do que fazem e apesar de trabalham muitas horas sobre muita pressão com frequência dizem “eu não tenho tempo para burnouts..”. Percebe-se.
Quando a recente situação de pandemia e de recolhimento obrigatório nos assolou a todos, foi clara a maior dificuldade comum: não é natural que não possamos sair, circular, exercer a nossa dimensão social, trabalhar para sustentar a família ou exercitar. O nosso entusiamo esmaece.
Tudo o que contraria a nossa natureza, deixa-nos stressados. E, no fundo, o que é que isto nos diz? Keep it simple! Foca-te naquilo que fazes bem e te realiza. Questiona-te se estás no lugar certo. Para quê complicar, tornar tudo mais complexo a cada dia? Contrariar a nossa essência contribui para um dos maiores problemas da sociedade: o burnout verdadeiro.
Perceber o Burnout
O Burnout pode ser diagnosticado essencialmente através de sintomas como:
Exaustão emocional – a sensação de estar no limite, sem forças, esgotado(a) e facilmente irritável;
Despersonalização – marcada muitas vezes por uma espécie de cinismo, com distanciamento afetivo dos colegas ou das pessoas que nos são mais próximas;
Ineficácia – sentimento de inutilidade do trabalho, baixa realização pessoal, frustração. Parece que nunca se termina nada..
O burnout, em específico, traz dois riscos: o primeiro é não ser diagnosticado quando ele acontece (enquanto doença silenciosa). O segundo é o contrário.
Não devemos confundir burnout com um estado momentâneo de insatisfação. Tentar reduzir a importância de uma situação ou problema com questões como “vale a pena deixar-me afetar por isto?” ou “o que ganho com o facto de me estar a desgastar com isto todos os dias?” são alguns exemplos que podem ser extremamente úteis para perceber em que campo se encontra.
Há muitas outras técnicas e terapias que servem igualmente para avaliar esta questão, incluindo práticas contemplativas ancestrais como a de Naikan, com origem no Japão. De acordo com esta prática, num exercício de retrospetiva profunda, é possível consciencializar que, sem o cuidado da nossa família e amigos, não seria possível existir na condição em que o fazemos, com as condições de vida que temos.
Artigo completo, aqui.
Artigo originalmente publicado no Observador a 09.06.21