Tenho colecionado diálogos com pessoas "muito bem-intencionadas", em palestras, aulas, reuniões e noutros fóruns que permitem algum debate. São pessoas que acreditam sinceramente no desenvolvimento ético das corporações e que agem em conformidade com esta crença. Isso é realmente muito bom! O problema surge quando a crença é operacionalizada através de intervenções e políticas que partem do pressuposto de que é preciso "corrigir" ou "consertar" as trabalhadoras e os trabalhadores e não a empresa. Obviamente, não é assim que a ideia é oficialmente descrita, mas é disto que se trata efetivamente.
Há um grande foco nas trabalhadoras e nos trabalhadores e não nos pressupostos sociais e económicos das empresas, como a maximização de lucro sem a necessária ligação a um propósito social eticamente aceitável. Tais pressupostos, clara e historicamente, produzem efeitos perversos sobre os modelos e os processos de gestão - estes, sim, muitas vezes, problemáticos em termos éticos.
Para pensarmos seriamente na Ética Corporativa temos de recuar alguns passos em direção à crença fundamental e disseminada no egoísmo e na maximização do lucro como bases comportamentais das pessoas e das empresas. Esta crença é, ainda, fortemente influente na mentalidade de executivos, empresários, empreendedores, políticos, policymakers, entre outros agentes relevantes, nos processos de tomada de decisão no contexto social.
Vamos ao século XVIII, ao famoso e influente Adam Smith, conhecido filósofo a quem, erradamente, se atribui uma forte defesa do egoísmo como o fundamento do comportamento dos agentes humanos. Contrariamente às ideias disseminadas acerca do seu pensamento, Adam Smith considera que fomos feitos para agir pelos outros, bem como por nós próprios (Hanley, 2019, 37).
A primeira frase da Teoria dos Sentimentos Morais, de Adam Smith, sempre me cativou e intrigou. Perplexo, via a sua ideia totalmente negligenciada por autores influentes, à exceção de alguns, como Amartya Sen. A frase, muito contraintuitiva para aqueles que só conhecem uma caricatura da sua obra, é a seguinte:
Por mais egoísta que se suponha o homem, evidentemente há alguns princípios em sua natureza que o fazem interessar-se pela sorte dos outros, e considerar a felicidade deles necessária para si mesmo, embora nada extraia disso senão o prazer de assistir a ela. (Adam Smith, 2019, p. 5; para um breve e muito interessante comentário, veja-se Ryan Hanley, 2022, p. 31)
Alinhado a esta importante e radical afirmação, Adam Smith também diz:
O homem foi criado para a ação e para promover, pelo exercício de suas faculdades, as modificações nas circunstâncias externas, próprias e alheias, que lhe pareçam mais favoráveis à felicidade de todos. (Adam Smith, 2019, p. 132 para um breve e muito interessante comentário, veja-se Ryan Hanley, 2022, p. 37).
A ideia, objetivamente expressa nestas duas frases, de que há uma interdependência clara entre a felicidade do agente individual e a felicidade dos outros agentes, é muito diferente da crença no egoísmo dos indivíduos e das empresas. Esta última, concretizada pelo "imperativo" da maximização de lucro independente de qualquer avaliação moral (não digo avaliação legal), como elemento que leva aos melhores resultados coletivos.
Adam Smith diz-nos claramente em que condições éticas o auto-interesse, seja do indivíduo ou da empresa, deve ser exercido. Há um compromisso claro com a ideia de que há uma interdependência fundamental entre as ações individuais auto-interessadas e a felicidade de todos. O autor não propõe, ainda, uma visão de independência entre a minha decisão, as suas consequências para mim e o efeito sobre a felicidade dos outros. Esta visão de egoísmo como elemento articulador da felicidade de todos é uma derivação ideológica e primitiva de leituras mal-intencionadas e/ou mal feitas.
O meu ponto não é contra a ideia de ética corporativa, lucro ou auto-interesse-não-egoísta. Proponho que levemos a sério o debate ético, sem reduzi-lo a uma parte apenas.
É preciso que as pessoas das empresas, trabalhadores e acionistas, façam uma espécie de auditoria ética e avaliem se os objetivos, os processos e os produtos são éticos em termos sociais, económicos e ambientais: as suas áreas de marketing utilizam estratégias aceitáveis?; comunicam de modo ético?; as áreas de vendas agem de modo moralmente defensável no interesse da empresa?; os seus líderes assediam ou não as suas equipas?; os modelos de negócio são ou não baseados em salários que exploram condições desfavoráveis de trabalhadoras e trabalhadores em território específicos?; os produtos e serviços que vendem cumprem efetivamente o que prometem?; as promessas de efetividade são baseadas em evidências? É importante que as empresas e as pessoas façam estas perguntas e reflitam sobre as respostas que daí obtenham.
Há pouco, li um artigo na Harvard Business Review que tinha um título muito sugestivo: "Building an Ethical Company". Os artigos publicados na HBR não são científicos, mas normalmente expressam "insights" de professores ou executivos que influenciam o pensamento de gestores em todo o mundo. O artigo é recente, publicado na edição de novembro-dezembro de 2021, e identifica temas de grande interesse como a aplicação das ciências comportamentais, no entanto, não refere de forma relevante nenhum dos temas estruturais que referi no parágrafo anterior.
É fácil perceber que o foco da autora e do autor está totalmente virado para as trabalhadoras e os trabalhadores e em como podem ser ensinados a agir com ética, tendo em consideração o tempo que passamos nas organizações.
Mas, pergunto, como posso aprender a ser ético numa empresa cujo modelo de negócio pressupõe o engano e a manipulação do consumidor, ou que produz algo especialmente nefasto ao ambiente ou à saúde das pessoas? E pior, como posso assumir que uma empresa deste tipo tenha algo a ensinar sobre ética?
Se queremos realmente discutir Ética, será necessário ultrapassarmos os limites que tradicionalmente nos são impostos por discursos ideológicos ligados à "liberdade da iniciativa privada". Não estou a propor que esta liberdade seja retirada por um regulador super poderoso, ou por qualquer nova instituição a ser criada. Estou a dizer, apenas, que, se quisermos debater Ética Corporativa e não somente leis, normas, marketing, regras e fatores de conformidade, criados a partir de uma visão de mundo não necessariamente ética, temos de ter liberdade para falar destes assuntos - especialmente as trabalhadoras e os trabalhadores, as/os acionistas, as consumidoras e os consumidores e outras partes interessadas.
Aquilo que eu proponho não é um fórum, um sistema ou um regulamento. Proponho apenas que o foco não seja apenas a trabalhadora e o trabalhador, que não sejam o "bode expiatório". As leis, o compliance e a regulação são muito importantes, claro, mas as não confundamos com Ética.
Finalmente, se a empresa foi fundada e continua alicerçada no pressuposto de que o seu papel social é lutar sistematicamente pela maximização do lucro, de modo claramente autocentrado/ egoísta, haverá um grande problema ético a ser resolvido, mesmo antes de pensarmos em cursos de Ética para as trabalhadoras e os trabalhadores. Muitos dirão que não existe essa procura autocentrada e egoísta pela maximização do lucro, uma vez que muitas empresas passaram a ter áreas de Responsabilidade Social, ESG (Environmental, Social and Governance), Ética, Compliance, Diversidade & Inclusão, entre outras, e porque muitos setores económicos são regulados externamente.
Estes são avanços claros e importantes, mas não tocam direta e objetivamente nos pressupostos que o famoso Adam Smith nos sugere para explicar os nossos comportamentos - a ideia de que fomos feitos para agir pelos outros, bem como por nós próprios (Hanley, 2019, 37)
Artigo originalmente publicado no Dinheiro Vivo a 01.06.21