Perante as consequências da pandemia COVID-19, jornalistas e comentadores têm dito que a economia mundial entrou numa fase de “desglobalização”, onde as empresas reduzem os seus vínculos internacionais e movem as suas operações para o seu próprio país. Mas a economia mundial está realmente a ser desglobalizada?
Nas últimas décadas, a rápida globalização transformou drasticamente o comércio internacional para melhor. Entre 1995 e 2010, o ritmo do crescimento do comércio mundial cresceu duas vezes mais rápido que o crescimento do PIB mundial. O comércio foi transformado pela expansão das cadeias globais de valor além-fronteiras e foi fomentado pelo progresso tecnológico e políticas públicas. Os governos aliviaram as barreiras comerciais e a Organização Mundial do Comércio expandiu-se, incluindo as economias emergentes.
O que tornou o comércio tradicional tão desejável? Uma das razões é o argumento clássico do economista David Ricardo sobre os benefícios mútuos do comércio livre, quando os países exploram as suas vantagens comparativas, ou seja, especializam-se em alguns produtos para exportação (aqueles que produzem a um custo menor) e importam os restantes. Esta divisão internacional do trabalho permite aos países beneficiarem de preços de importação mais baixos e ganhos de produtividade. Uma segunda razão indica que, ao explorar fontes de procura diversificadas (ou seja, ao exportar para outros países), as empresas diversificam o risco dos choques internos. Uma integração comercial mais profunda permite que os países “redirecionem” a procura para economias externas em crescimento face às desacelerações domésticas.
Um estudo do FMI, lançado em 2018, analisou 147 países e concluiu que um aumento no nível de globalização estava associado a um aumento no crescimento a cinco anos e à retirada de centenas de milhões de pessoas da pobreza nos mercados emergentes. A integração comercial permitiu também que o crescimento fosse menos afetado por oscilações nas condições internas e revelou-se especialmente valiosa para a Europa (e Portugal) na sequência da crise da dívida soberana, quando a participação das exportações no PIB da zona euro aumentou substancialmente.
Mas a contrapartida de uma maior abertura comercial é uma maior exposição aos choques globais. O comércio internacional pode levar à desigualdade de rendimentos, acionando o protecionismo, como temos visto em alguns países. Dada a sua profunda integração na economia global, a Europa está exposta a estas mudanças. A desaceleração do crescimento do comércio reduz a possibilidade de os países transferirem a procura para economias externas, quando precisam. De facto, depois de 2008, o ritmo da globalização diminuiu e, em 2019, o crescimento do comércio mundial caiu para menos de metade desde o ano anterior.
A pandemia aumentou esta tendência. Em 2020, mais de 1900 novas medidas comerciais restritivas foram implementadas a nível mundial. As novas barreiras comerciais não prejudicam apenas as exportações, mas criam novas vulnerabilidades. Por trás de algumas medidas protecionistas está uma mudança na política industrial, liderada pela China e Estados Unidos, com vista à segurança e em detrimento da eficiência, originando desvios geopolíticos nas cadeias de abastecimento globais, especialmente para bens estrategicamente relevantes. Estas mudanças levantam questões difíceis para indústrias dependentes de um número limitado de fornecedores globais. Por exemplo, 45% das importações de componentes farmacêuticos ativos da Europa vêm da China e 98% do nosso fornecimento de metais de terras raras.
As multinacionais estão a diversificar as suas cadeias de abastecimento para reforçar a sua resiliência. Segundo um estudo da Ernst & Young, cerca de um quarto das grandes empresas afirmam que a diversificação de fornecedores será a sua principal prioridade nos próximos anos. Mas reestruturações deste cariz podem ter também implicações para a configuração da procura global. Por exemplo, poderia acelerar o reequilíbrio dos principais mercados emergentes, tornando as perspetivas para a procura externa ainda mais incertas.
Num discurso em outubro passado no Encontro Anual do FMI, Christine Lagarde, Presidente do BCE, destacou duas prioridades que ajudariam a Europa a atuar como âncora de estabilidade num mundo mais fraturado e incerto. A primeira é a abertura do comércio. Mesmo que as ações protecionistas de outros países signifiquem que os benefícios do comércio sejam menores, a resposta não é responder do mesmo modo. Para Lagarde, a UE deveria usar o seu peso económico para moldar a abertura pela cooperação em vez do conflito, e redistribuindo os benefícios da globalização para aqueles que perderam. A Europa tem imenso potencial para utilizar a dimensão do seu mercado único e exercer uma influência global positiva por meio do comércio livre. A segunda prioridade é que a Europa fortaleça a sua própria procura interna, essencial para compensar um cenário global mais incerto onde as economias podem ter mais dificuldade em depender da procura externa em tempos de necessidade. Isto tornaria o crescimento europeu mais robusto e apoiaria a estabilização do crescimento global, caso a contribuição de outras economias enfraqueça.
Então, a globalização está, de facto, de saída? Um estudo do “Business Futures” da Accenture revela que a economia global interconectada está longe de recuar, mas está a transitar para uma distinta próxima fase, onde a globalização seja radicalmente diferente do que era em 2019. A pandemia elevou a nossa noção de “onde” – social e economicamente – tirando o conceito de localização das experiências globalizadas. Segundo a Accenture, esta nova etapa da globalização vai ser liderada pelas empresas que impulsionam o poder de decisão para as pessoas nas “margens” das suas operações pelo mundo; que implementam fortemente a inteligência artificial para antecipar as mudanças e que combinam ambientes virtuais e físicos para conectar pessoas e lugares – sem viagens físicas.
À medida que a pandemia do COVID-19 continua, as empresas estão a adaptar-se à nova realidade. Algumas recorrem ao protecionismo e distanciam-se dos negócios internacionais. Embora compreensível, não é uma solução a longo prazo. São inúmeros benefícios do comércio internacional: as empresas podem realizar operações a um custo menor, em maior escala e com acesso a mais talentos e clientes. A guerra comercial EUA-China fez com que algumas empresas saíssem da China, mas muitas simplesmente mudaram-se para outras regiões para diversificar as suas operações.
A crise financeira mais recente mostrou que as parcerias internacionais são vitais para revigorar a economia global e trazem muitos benefícios. Como tal, quando os encerramentos locais forem suspensos, as empresas podem esperar trabalhar com mais parceiros no exterior – não menos. Apesar de alguns ventos contrários, a globalização está viva. Os benefícios do comércio internacional e da diversificação da procura ainda estão disponíveis.
Artigo originalmente publicado no Jornal de Negócios de 16.02.2022