Há uns dias, um amigo enviou-me uma anedota de “fake news”: “Putin recebe o Prémio Nobel da Medicina por erradicar a Pandemia COVID”. Sob circunstâncias diferentes, seria uma piada engraçada. Mas não há nada de engraçado no que está a acontecer na Ucrânia e que afastou a atenção do mundo da pandemia. Muito se tem falado sobre o conflito e as suas consequências. Apesar de militarmente a guerra estar circunscrita à Ucrânia, o seu impacto económico é global.
O Fundo Monetário Internacional (FMI) afirma que a invasão russa da Ucrânia irá prejudicar a economia global de várias maneiras. Kristalina Georgieva, diretora-geral do FMI, destaca a crise alimentar: “O impacto desta guerra nos preços dos bens alimentares será bastante dramático. O trigo está a ser destruído. Pela frente teremos escassez e custos mais elevados. Guerra na Ucrânia significa fome em África. Vejamos, por exemplo, o Egito: 80% das suas importações alimentares vêm da Ucrânia e Rússia. Imagine o Egito com os preços dos alimentos a subir e tumultos na rua”.
A Europa está a ser particularmente afetada. A sua dependência da energia russa está a ser descrita como uma verdade desconfortável. E o modo como a guerra na Ucrânia irá impactar negativamente a economia europeia é outra verdade desconfortável. De acordo com a presidente do Banco Central Europeu (BCE), Christine Lagarde: “A guerra terá um impacto substancial na atividade económica e na inflação através de preços mais altos na energia e matérias-primas, da interrupção do comércio internacional e da falta de confiança. O impacto destes efeitos irá depender da evolução do conflito, das sanções atuais e de possíveis medidas adicionais”. O BCE mudou a sua previsão da inflação para o ano corrente de 3,2% para 5,1%, o nível mais alto desde a chegada da moeda única europeia.
Muitos economistas temem que as consequências da invasão russa da Ucrânia conduzam à “estagflação”, ou seja, que reduzam o crescimento global e aumentem a inflação no próximo ano. O Fórum IGM, em Chicago, consulta regularmente alguns dos economistas mais reconhecidos na Europa e nos Estados Unidos sobre as suas opiniões na área da atualidade da política pública. O IGM convidou o painel de economistas a partilhar as suas opiniões quanto às potenciais consequências para a economia europeia, crescimento global e inflação.
Sobre a questão “As consequências da invasão irão reduzir o crescimento global e aumentar a inflação global no próximo ano?”, mais de três quartos do painel concordam, e o restante revelou-se indeciso. Karl Whelan, da University College Dublin, que concorda totalmente, diz: “Este é o clássico choque negativo da oferta. Como sabemos desde a década de 1970, estes choques aumentam a inflação e reduzem a produção”. Robert Shimer, de Chicago, tem menos certeza: “É um choque adverso da oferta, mas se será ou não inflacionário depende da resposta da política monetária”.
Sobre a pergunta “Será que a proibição total das importações de petróleo e gás irá trazer riscos de recessão nas economias europeias?”, 70% concordam e a maioria dos restantes inquiridos está indecisa. Christopher Pissarides, da London School of Economics, indica: “A Alemanha é totalmente dependente do gás russo. Uma recessão na Alemanha significa uma recessão para a Europa.” Outros expressam que, mesmo que um embargo de energia se revele caro para as economias da Europa, ainda pode ser desejável. Alguns indicam que, apesar dos custos para a Europa, um embargo ainda pode ser justificado, pois acreditam que isso não levará necessariamente a uma recessão severa na Europa.
Na Alemanha, muitas pessoas estão zangadas, porque sabem que as importações de gás estão a financiar as atividades de guerra russa. Alguns dos principais políticos alemães exigem o fim imediato das importações de gás da Rússia. Mas metade dos lares alemães usa gás para aquecimento e cerca de metade desse gás vem da Rússia. Por isso, o governo mostra-se reticente ao afirmar que seria uma ameaça à segurança energética da Alemanha.
Em geral, os principais riscos para a economia europeia resultam: 1) do choque desencadeado pelo aumento dos preços do petróleo e do gás, 2) da sua dependência da energia russa e 3) do impacto das ameaças geopolíticas na confiança das famílias e dos investidores.
Ao enfrentar um choque de preços de matérias-primas, a receita “standard” é que o Banco Central lide com os efeitos de segunda ordem. Não deve embarcar numa tentativa fútil de controlar o impacto imediato do aumento de preços (sobre os quais os aumentos das taxas de juros têm efeito muito limitado), e deve tentar gerir mudanças permanentes dos preços relativos. No muito curto prazo, provavelmente o Banco Central Europeu irá esperar para ver. Mas, em breve, poderá ser forçado a fazer uma escolha politicamente difícil entre tolerar a inflação, permanecendo acima da meta por mais tempo, ou aumentar as taxas de juros e enfraquecer a economia no meio de um confronto geopolítico.
Na maioria dos países da União Europeia, os governos introduziram medidas para conter o aumento dos preços e apoiar as famílias vulneráveis. Mas a questão é se os governos devem confiar principalmente nos empréstimos e subsídios (que podem ser direcionados, mas não contribuem para evitar a inflação) ou devem intervir por meio de cortes de impostos e controlo de preços (que irão afetar o índice de preços ao consumidor, mas revelam-se mais caros em termos orçamentais).
O contexto de guerra está a forçar os governos a implementar mais intervenções diretas nos preços do que normalmente considerariam. Em Portugal, a Confederação do Comércio e Serviços de Portugal: CCP apelou ao Governo e exigiu “medidas robustas e urgentes contra a escalada de preços”. A CCP considera que, caso não se adotem medidas urgentes para mitigar os efeitos da escalada de preços em áreas fundamentais como os combustíveis, a eletricidade e as matérias-primas, muitas empresas, já debilitadas por dois anos de pandemia, terão que encerrar ou suspender a sua atividade. A CCP exige que o Governo adote um conjunto de medidas robustas, designadamente: apoios à tesouraria (empréstimos com garantia do Estado e possibilidade de conversão de uma parte desse empréstimo em subsídio não reembolsável); redução da taxa de IVA dos combustíveis para a taxa intermédia; e revisão das tabelas de IVA relativamente a um conjunto de bens essenciais, nomeadamente bens alimentares.
A invasão da Ucrânia é um ponto de viragem histórico importante. A guerra inevitavelmente irá conduzir a União Europeia e os estados-membros a afastarem-se de políticas “standard” e a um mundo confuso, onde os governos interferem nos mercados por razões de segurança, onde a política supera a economia, e a política monetária e fiscal torna-se fortemente interdependente. Qualquer que seja a duração da guerra, o seu legado será duradouro. Irá moldar as escolhas políticas da Europa para os próximos anos e décadas. Até agora, a expectativa na União Europeia era que os investimentos em descarbonização, digitalização e resiliência dominassem a agenda a médio prazo. A segurança económica e a defesa são agora adicionadas a esta agenda.
Artigo originalmente publicado no Jornal de Negócios a 17.03.2022