"As empresas fazem a sua parte quando tentam vender o máximo possível, utilizando todas as estratégias à sua disposição. Cabe aos consumidores a sua própria defesa - ter atenção às estratégias de venda, analisar as opções de escolha e tomar a melhor decisão para si e para suas famílias. As empresas cuidam dos seus interesses e os consumidores dos deles."
Tenho ouvido esta afirmação muitas vezes, em diversos contextos, desde há muito tempo. Por mais equivocada que considere esta crença, compreendo quem, nas áreas de marketing e desenvolvimento de negócios, tente enganar-se a si próprio. Tal como nós, estas pessoas não querem produzir um juízo moral negativo, e avaliar moralmente as estratégias de manipulação do consumidor, seria avaliarem-se como operadores nesta realidade. O caminho cognitivo mais fácil para diminuir o desconforto e dissonância incómoda, é imaginar que existe um processo justo, no qual há duas partes em permanente conflito com condições equitativas para tomar decisões: as empresas e os consumidores. Esta confortável racionalização transfere objetivamente toda a responsabilidade para o consumidor.
As Ciências Comportamentais têm demonstrado sistematicamente que muitas das nossas decisões vão em direções contrárias, não só aos nossos próprios interesses como também aos interesses da sociedade, não porque somos estúpidos, negligentes ou "pouco inteligentes", mas porque não somos o decisor racional idealizado em muitos manuais de Gestão e Economia. Sabemos que as nossas decisões podem ser influenciadas por um grande conjunto de elementos contextuais que, quando eficazmente manipulados, levam-nos a decisões conflituantes com os nossos melhores interesses e os da sociedade.
Algo simples como a indicação, numa plataforma de e-commerce, de que uma das opções é a "mais popular", aumenta significativamente a probabilidade de os consumidores seguirem esta sugestão, mesmo que não seja a melhor para si, mas sim para a venda. Analogamente, dar a informação de que no momento em que estamos a ver um produto há oito pessoas a vê-lo connosco, cumpre um papel semelhante. Se associarmos a tudo isso a informação de que existem apenas duas unidades em stock, teremos o puzzle completo, associando uma sensação intensa de escassez. Estas informações produzem um importante desconforto psicológico no consumidor operacionalizado por processos cognitivos e sociais, mas que, na maior parte das vezes, passa despercebido e, por isso, pouco ou nada é valorizado.
Será que estas informações "escolhidas a dedo" nos ajudam a tomar boas decisões? Alguns dirão que sim, pois, uma vez que muitas pessoas decidiram pela opção "mais popular", é uma "evidência" de que esta é a melhor. Na mesma perspetiva, se há muitas pessoas a ver a mesma oferta, é porque aquele é um bom produto e uma boa opção de compra, e mais, se há poucas unidades, é porque muitos já compraram e tenho de despachar-me, senão ficarei sem o meu exemplar. Outros ainda dirão ingenuamente (ou por má-fé) que quanto mais informação, mais transparente é o processo e melhor será a decisão, como se a escolha intencional do tipo de informações a divulgar e do seu enquadramento não fizesse nenhuma diferença.
Pergunto-me, em primeiro lugar, se estas informações são sempre verdadeiras? É uma pergunta justificável porque, na maior parte das vezes, não há qualquer transparência acerca das fontes de informação, da sua fiabilidade ou dos critérios de enquadramento. É comum vermos um produto que começou a ser vendido na semana anterior, já ter marcada uma opção como sendo a "mais popular". É mais popular, porque vendeu 1% mais que a outra ou porque vendeu 70% mais? Há apenas 2 unidades em stock, mas quando será reposto o stock - amanhã, nas próximas duas semanas, nunca? O que significa realmente a informação de que oito pessoas estão a ver o produto? Quantas visualizações, em média, são necessárias para que um exemplar seja vendido - 10, 100, 1.000? Desde a última venda, quantas visualizações aconteceram? Sem estas informações adicionais, não é possível interpretar de modo útil as informações anteriores.
As empresas sabem que as informações que escolheram transmitir, mesmo que sejam verdadeiras, não ajudam o consumidor porque são intencionalmente enquadradas para que o mesmo tome uma decisão menos deliberada, mais rápida e provavelmente enviesada pelas informações "escolhidas a dedo". Alguém poderá dizer que o consumidor conseguirá livremente escolher levar, ou não, em consideração esta informação, mas isso não é verdade. Não é possível simplesmente desligar o processo cognitivo que leva em consideração informações deste tipo. Mesmo os especialistas são influenciados por informações que não deveriam considerar.
Por quanto tempo ainda vamos pensar que isso é aceitável? Até quando não será reconhecida a responsabilidade moral das empresas e dos seus profissionais no design de processos de influência do consumidor? Os exemplos que referi fazem parte de um conjunto de estratégias já bastante conhecido que piora as condições de decisão do consumidor. A questão não é impedir que as empresas vendam ou que influenciem os consumidores a comprar os seus produtos, mas, sim, impedir que tornem as decisões dos consumidores menos deliberadas e menos fundamentadas nos melhores interesses das pessoas. O mais problemático é que existem muitos outros exemplos, muito mais subtis, que o leitor provavelmente nem imagina.
Se somarmos à aplicação das Ciências Comportamentais, o rapidíssimo desenvolvimento da tecnologia e das aplicações da inteligência artificial, a enorme quantidade de dados disponíveis nas empresas e na internet, e o nosso sistemático comportamento de troca de privacidade por conforto no contexto da internet, temos todas a condições para uma passagem perfeita da Internet of Things (IOT) para Internet of Behavior (IOB).
Isto é necessariamente mau? Não. Muitas coisas positivas poderão ser feitas para todos - consumidores, cidadãos, colaboradores - a partir do desenvolvimento e das condições científicas e tecnológicas. No entanto, é necessário pensarmos numa regulação que acompanhe este progresso. É preciso dar o máximo possível de transparência aos processos, de modo que, sem criar gargalos ao desenvolvimento e à operação, a sociedade civil tenha condições de fiscalizar e agir rapidamente quando for necessário para impedir danos irreparáveis para as pessoas, para a sociedade e, muitas vezes, para grupos minoritários.
Não se trata de impedir o desenvolvimento, criar dificuldades ao comércio, ou diminuir a relação dinâmica entre as empresas e os consumidores, mas, sim, criar condições de transparência para que o mercado se desenvolva dentro de um campo ético, mais sustentável e positivo para todos. Por fim, chamo a atenção para o facto de que este processo, mais transparente, ético e sustentável, pode ser criado em colaboração com as empresas que reconheçam a sua responsabilidade moral no processo.
Artigo originalmente publicado no Dinheiro Vivo a 28.03.2022