A teoria da inovação ensina que existem lentes que aceleram a disrupção de negócios, setores, indústrias, clientes, mercados e, no geral, da civilização. Uma delas tem um poder absolutamente avassalador: as descontinuidades. Uma descontinuidade, para ser motor de inovação, deve consistir numa perturbação abrupta e disruptiva, contra cíclica e que crie dois estados de espírito: marasmo e sentido de urgência.
O marasmo introduz ruido, confusão, desespero, crise. A forma como lhe respondemos diferencia as sociedades, os indivíduos e as organizações. Contextualizar o marasmo, responder aos seus desafios e interpelá-lo, é, por natureza, o papel da inovação. O sentido de urgência é a capacidade de respondermos ao marasmo de forma assertiva, obstinada, irreverente e criativa.
A conjugação destes dois fatores fará do Coronavírus um acelerador de futuros muitíssimo promissor.
A pandemia antecipa o espectro e a velocidade de mudanças que já estavam em curso, como o trabalho remoto, a educação à distância, a busca por sustentabilidade e a exigência, por parte da sociedade, de que as empresas sejam mais responsáveis do ponto de vista social, mais ativas do ponto de vista humanitário e mais relevantes do ponto de vista de uma construção colectiva.
Outras alterações, mais embrionárias e não tão percetíveis, ganham agora um novo sentido diante da revisão de valores, provocada por uma crise sanitária, sem precedentes na nossa geração. Podemos citar, como exemplo, o fortalecimento de valores como solidariedade e empatia, ou a avaliação do modelo de sociedade baseado no consumo e no lucro, a qualquer custo.
Introduzem-se, igualmente, conceitos ainda submersos em complexidades conceptuais: a evidência da fratura dos fenómenos lineares para exponenciais (não apenas pandémicos, mas sobretudo tecnológicos), a exigência de organizações mais vivas e orgânicas, organizadas em modelo de fluxos de conhecimento e ecossistemas de valor, o desenho de soluções e produtos que cheguem às pessoas e não dependam do roteiro contrário.
“A vida depois do vírus será diferente”, disse ao site Newsday a futurista Amy Webb, Professora da Escola de Negócios da Universidade de Nova York. “Temos uma escolha a fazer: queremos confrontar crenças e fazer mudanças significativas para o futuro ou simplesmente preservar o status quo?” Falamos do regresso ao “novo normal”. Fará esta expressão sentido? Ou buscamos antes, por evolução e aprendizagem, um “melhor normal”, ou um “novo melhor”?
As Pessoas, a Sociedade e o Estado
A crise deixará marcas profundas. O diário de um número de mortos absolutamente inconcebível, a realidade brutal das famílias devastadas, a solidão dos mais vulneráveis, marcarão, por muito tempo, a memória coletiva.
Tal como o I Guerra Mundial e a Pneumónica pavimentaram a criação dos sistemas públicos de saúde, e o Pós II Guerra Mundial abriu caminho ao Estado Social, a crise do Coronavírus acarretará, também, mudanças estruturais, na forma como as pessoas olham para o Estado.
A crise das dívidas soberanas e as políticas de austeridade incentivaram uma visão bastante crítica acerca da intervenção do Estado na sociedade. Melhor Estado significaria, quase sempre, menos Estado.
Ora, a epidemia do Coronavírus mostrou a importância estratégica dos recursos públicos, enquanto arma de combate a uma classe nova de inimigos, imprevisíveis, mas letais. É provável que os cidadãos reclamem um Estado diferente, com capacidade para proteger as pessoas e o país, exigindo-lhe presença reforçada em áreas estratégicas, quer ao nível da prestação de serviços públicos críticos ou da produção de bens de primeira necessidade.
Igualmente, a confiança que as pessoas depositam no Estado e nos agentes públicos será um aspeto fundamental. Nos últimos anos, a demagogia e o populismo, um pouco por todo o mundo, bem como a ética fraca da social media, erodiram a confiança das pessoas no sistema político e na organização do Estado. A crise atual, com a angústia e a incerteza que acarreta, obriga a um esforço sério de reconciliação das pessoas com o poder público. E esta deve operar-se através do empoderamento dos indivíduos, tornando-nos menos manipuláveis e mais capazes de realizar escolhas acertadas, contemplando não apenas o momento presente, mas também o futuro.
Só assim, se poderá prevenir a proliferação de regimes de pendor populista e autoritário, ao mesmo tempo que se robustece a independência e a resiliência da própria organização social.
Também, a emergência do conceito less is more – representa o colapso de um certo capitalismo. A sustentabilidade vista numa perspetiva mais honesta, mais ampla e mais real, que obriga a repensar o modo como as pessoas vivem e a resposta das organizações a esta mudança. É crítico equacionar o valor concedido às pessoas, ao ambiente e à geração de impacto positivo na sociedade, ou a dedicação a propósitos significativos e mobilizadores.
Pessoas, Transição Digital e Emergência Digital
A sociedade que emergirá desta turbulência será muito mais digital. O esforço de digitalização conhecerá um salto exponencial, à medida em que os limites físicos da ação humana funcionem como constrangimentos ao retomar das atividades económicas. As resistências serão derrubadas, à medida que o mundo virtual se assume como a alternativa à disrupção do mundo físico.
Novos modelos de negócio passarão a ser não apenas necessários, mas decisivos. Veja-se os “restaurantes fantasma” - aqueles que funcionam só em delivery. Com a possibilidade de novas pandemias, num futuro próximo, é muito importante entender os impactos no modelo de negócio e quais os ajustamentos necessários ao nível das competências críticas: o serviço de entrega será determinante na perceção de valor e não apenas mais um add-on.
Para todo o setor da logística, haverá que perspetivar a transformação urgente das cidades inteligentes, dos hubsde serviços de proximidade, do last mile, como mais decisivo que o long mile… e a mudança de protagonistas que isso implicará.
Todos nós nos habituamos ao digital office. Entretanto, uma parte enorme da empresa, e em muitos casos a empresa inteira, tornou-se virtual.
Mudámos de canal, como mudámos de sala no espaço físico. Conseguimos realizar virtualmente atividades, que há apenas dois meses considerávamos absolutamente dependentes de presença física. Estamos a dar, juntamente com os nossos filhos, os primeiros passos na utilização generalizada da sala de aula virtual. Mas o extraordinário, é que as minhas filhas já visitaram mais museus virtuais nesta quarentena, do que físicos em toda a sua vida. Notem a quantidade de artistas e produtores culturais que, para fazer face ao isolamento social, passaram a utilizar quotidianamente plataformas como o Facebook e o Instagram, para concertos live e todo o tipo de espetáculos. Estes comportamentos evoluirão para experiências culturais e turísticas, que tentam conectar o real com o virtual, a partir de tecnologias existentes, como a realidade virtual e aumentada, mas que se irão disseminar mais. E se combinarmos este tipo de experiências com a lógica do e-commerce, por exemplo, encontramos uma vida económica nova e absolutamente desafiante: o shopstreaming.
A educação à distância tornar-se-á mais dignificada e permitirá, desde idade precoce, o acesso a conhecimento global. Este pode aliás ser o embrião de uma nova fase de iluminismo cultural e científico onde a globalização transita de um “ir para a todo o lado”, para um “estar em todo o lado, sem sair de um sítio só”.
A relação das pessoas com o espaço (e daí, também com o tempo) não voltará a ser a mesma.
Pessoas e a Nova Organização do Trabalho
A aceleração da mudança e a disrupção são temas às quais os líderes das organizações têm consagrado esforço, tempo e dinheiro. Ainda assim, a transformação foi lenta.
A crise do Coronavírus criou a urgência que tornou a rapidez da mudança verdadeiramente disruptiva.
A face mais visível é o teletrabalho. Este era já era usado, conjuntamente com ferramentas como a vídeo conferência, o social messaging, o clould file sharing, e outros. Contudo, dado o isolamento social imposto, a utilização generalizou-se e a dinâmica do trabalho alterou-se definitivamente. Os colaboradores descobriram que lhes permite maior produtividade e flexibilidade. As empresas, por seu turno, começam a perceber um potencial muito significativo de poupança nos gastos.
O contexto VUCA (volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade) inunda os nossos dias e determina um conjunto de alterações muito importantes ao nível da organização do trabalho. Requerem-se locais de trabalho com novos layouts, papeis e funções redefinidas, aprendizagem rápida, gestão ágil e, sobretudo, um sério reforço de confiança – este é o desafio a que as organizações tentam dar resposta. É o momento de olhar com confiança para os colaboradores, já que o teletrabalho deixou de ser uma alternativa para ser uma necessidade e, com isto, redefinir estruturas de poder que, por definição, foram erguidas em cima de desconfiança e duma visão de comando e controlo puros.
Certo é que as transformações que se operarão na sociedade, acentuarão a mudança de paradigma na forma de ver as pessoas nas organizações.
Estas deixarão de ser vistas como ativos de conhecimento, que importa formar e depois reter, sob pena de perda do acervo de valor da organização e passarão a ser reconhecidas como fluxos de conhecimento, que importa nutrir.
Cada vez mais teremos profissionais organizados em ecossistemas e plataformas de valor, onde as organizações poderão ir buscar as melhores pessoas, e nos quais estas esperam trabalhar sobre dimensões de trabalho, inteiramente diferentes. Devemos referir as equipas autodirigidas, que se auto propõem, em fluxos de conhecimento, para dar resposta a um desafio organizacional, empresarial ou comunitário. Estas equipas organizam-se com alto grau de autonomia, decidem com flexibilidade e rapidez, reformulam-se permanentemente em função dos requisitos do desafio ou tarefa e conseguem, regra geral, taxas muito altas de sucesso, face aos seus objetivos.
As empresas mais ágeis, normalmente em setores menos tradicionais e nos que é mais natural a digitalização e virtualização quase completa do negócio, são as mais preparadas, quer para a colaboração, quer para dar resposta às exigências do trabalho, às restrições físicas operadas nos negócios e para a evolução em novos paradigmas. Outras, mais tradicionais, ainda lutam com políticas que determinam onde e como os dados podem ser acedidos e processados, o tipo de acesso dos colaboradores, silos de responsabilidade e, em geral, uma cultura que privilegia a presença em relação à produtividade e o controlo em relação à autonomia. Mas as organizações não terão outra alternativa que a adaptação. É bem possível que, mesmo as resistentes, descubram que podem ser mais eficientes com equipas distributivas e alterem os seus procedimentos, entendendo como isto lhes permitirá atrair uma pole de colaboradores muito talentosos e competentes. Este fenómeno ditará, por ser turno, a redução do investimento em instalações e o desaparecimento de algumas camadas de gestão das organizações, que se perceberá não acrescentam valor ao seu desempenho e progresso.
Vale a pena ressaltar o papel crucial que a filosofia Agile e as ferramentas e artefactos associados desempenharão neste novo contexto, quebrando os silos hierárquicos e funcionais, flexibilizando o processo de decisão e introduzindo, por outro lado, uma cultura de experimentação e de risco, fundamental para viabilizar a inovação organizacional.
Os Dados como Direito Fundamental das Pessoas
Os últimos anos têm dado voz a uma luta, sobretudo na Europa, pela proteção dos dados das pessoas. O Regulamento de Proteção de Dados (RGPD) mudou a forma como as empresas e os negócios recolhem, armazenam e tratam os dados dos seus colaboradores e dos seus clientes.
A crise do Coronavírus marcará um ponto crítico na problemática dos dados versus privacidade e poderá despoletar uma tendência de ação que se manterá muito para lá do termo da crise.
Muito se tem falado nas tecnologias que podem prestar um auxílio precioso à gestão da crise de saúde.
Falamos, entre outras, de aplicações de reconhecimento facial e vigilância biométrica, com capacidade para rastrear e vigiar a presença dos indivíduos e a manifestação de sintomas, bem como a evolução da temperatura do corpo e a pressão arterial. Esta informação é muito sensível, e o processo de recolha e tratamento da mesma colocará, em tempos normais, questões graves.
A pandemia do Coronavírus tem, igualmente, mostrado que os níveis de vigilância e monitorização a que as pessoas estão sujeitas ou podem ser sujeitas, principalmente pelo uso de smartphones, ultrapassa largamente a sua capacidade de compreensão, quando assinalam “aceito os termos de uso e a política de privacidade” numa aplicação qualquer.
Num contexto de luta pela sobrevivência, é natural a propensão das pessoas a aceitar medidas extremas, que são entendidas como razoáveis, em função do que se quer prevenir. Mais segurança a expensas da liberdade, por exemplo. Ou seja, se colocadas diante do dilema da proteção dos seus dados ou proteção da sua saúde física, as pessoas predominantemente optarão pela segunda.
Mas e no mundo pós-coronavírus? Qual o arco de possibilidades que se desenha? Será razoável defender mega sistemas de vigilância a operar sobre os cidadãos, entendidos apenas sobe a égide da tecnologia, dissociados da base humana que lhes subjaz e geridos por governos e corporações?
A preocupação ganha redobrada importância, se vista à luz da vulnerabilidade evidenciada pelas democracias.
Um caminho possível, seria o reconhecimento do valor dos dados como direito fundamental de cada pessoa. Sabemos que os dados são, em si, uma riqueza extraordinária, suscetível de ser valorizada e de gerar progresso e prosperidade. Porque não permitir aos seus titulares originários a captura de uma parte desse valor? Ou colocar esse valor ao serviço desses titulares originários?
Uma tal visão alteraria a perspetiva com que, quer os governos quer as empresas, olhariam para as pessoas, enquanto sujeitos dos dados e objeto das medidas de recolha e tratamento dos mesmos. Seria igualmente possível uma interação mais transparente entre o Estado, as empresas que recolhem e tratam os dados, e a própria sociedade, assente não no controle e prevenção da manipulação, mas também no esforço de capacitação das pessoas para conhecer, gerir e dispor com consciência dos seus próprios dados, não apenas em seu benefício, mas para o maior bem da humanidade.
Pessoas, Organizações e Propósito
A disrupção humana e social provocada pela pandemia evocou nas pessoas e na sociedade uma aspiração por um mundo mais equilibrado e a consciência da necessidade de uma mudança séria na forma de viver. Ao mesmo tempo que a crise global nos empurra para a transformação digital, a necessidade da nossa transformação humana ganha, de repente, uma relevância brutal e torna-se muito mais clara todos.
O contexto Coronavírus permitiu perceber a opção inequívoca pela saúde e proteção das pessoas em detrimento da economia. A energia mais importante é agora profundamente humana: a resiliência, a inventividade, a capacidade de apoiar a realização da condição humana.
Vimos empresas a fechar portas ou a reorganizar-se, preocupadas com os seus colaboradores e clientes, muito antes da imposição das autoridades governamentais e vimos grandes empresas a redirecionar os seus recursos, a sua força produtiva e de inovação em prol de equipamentos e auxílio às pessoas e às comunidades.
A resposta à pandemia não surgiu de uma mentalidade de produção, mas antes da capacidade de encontrar soluções inovadoras, como as de treinar e equipar as equipas para trabalhar remotamente ou a de alavancar competências que permitissem mudar a produção de uma linha de produto para outra, que correspondesse à procura dramática de certos bens e equipamentos. Isto mostra um novo imperativo das lideranças, mais focado em inspirar o potencial humano do que na produtividade, em si.
O movimento do propósito tem sido uma das principais forças de mudança dos últimos anos, no meio corporativo, rivalizando apenas com a transformação digital.
Temas como equal pay, diversidade e inclusão, maior presença de mulheres nos boards e a sustentabilidade, conquistaram atenção e destaque junto de colaboradores, clientes e investidores. As organizações admiradas serão, cada vez mais, aquelas que se comprometem e entregam um propósito, aquelas que privilegiam o impacto ao resultado financeiro, nos bons e nos maus momentos, e conseguem alavancar aí, a sua credibilidade e prosperidade.
Ana Salomé Martins
Diretora de Pessoas e Comunicação da NORS
[Artigo publicado originalmente na revista da Porto Business School, NORTE.AR]