Ao longo dos anos, tenho-me interrogado sobre o propósito da vida, no sentido da evolução que, partindo de oscilações quânticas conduziu ao Homo sapiens e, dentro da nossa espécie, conduziu a cada um de nós.
Ao longo da brevíssima história humana, muitas foram as formulações feitas para esta questão e ainda mais as respostas sugeridas por filósofos, cientistas, pensadores e curiosos. Eu não escapei à regra e a minha perceção sobre o “propósito da vida” foi evoluindo ao longo dos anos. No momento presente, a ideia que mais me preenche e norteia prioridades, é a seguinte: o propósito da vida é de natureza puramente informacional: o propósito da vida é “criar significado”.
Em anos recentes, economistas e filósofos têm defendido que o propósito da vida é atingir felicidade, mas não estou de acordo, pois considero que atingir felicidade deve ser um objetivo secundário na vida das pessoas. Para mim, o objetivo primário deve ser criar significado.
Atingir felicidade está associado a preencher necessidades e sentir-se bem, mas não implica criar significado; criar significado está associado a desenvolver uma identidade pessoal que integre a totalidade das experiências de uma pessoa, constituindo uma base sólida para construir o futuro em que a pessoa acredita e quer ter. Felicidade foca-se no presente, enquanto que significado foca-se em relacionar e integrar passado, presente e futuro. Abarcar projetos e iniciativas que nos transcendem envolve sempre enfrentar desafios e causa stress, e esse esforço promove significado embora não promova, em geral, felicidade. Adicionalmente, a expressão do “eu” humano e social é essencial nos processos de criação de significado, mas não de busca de felicidade. Desenvolver criatividade e sabedoria promovem necessariamente a criação de significado, mas não de felicidade. É nesta perspetiva — o propósito da vida é criar significado — que procurarei apresentar algumas pistas sobre o nosso futuro coletivo pós-pandemia na dimensão de “Propósito”.
A atual pandemia, para a qual muitos cientistas nos alertam já e pelo menos desde 2003 com indiferença quase universal dos dirigentes políticos, está a causar e vai continuar a causar profundas perturbações nos tecidos económico e social dos países atingidos — que serão todos, a curto prazo — para os quais nem governos, nem instituições nem pessoas estavam preparadas. Infelizmente e à data presente, prevejo que venha a deixar marcas profundas dos mais variados tipos e essas marcas irão modificar de forma radical como encaramos a nossa própria vida nas suas mais variadas facetas: pessoal, familiar, profissional e social. Vai afetar igualmente a forma de governo das sociedades. Uma das razões para a dimensão brutal do que está a acontecer é o facto desta pandemia não ser única; este vírus veio para ficar e, certamente, novos vírus surgirão no futuro, mais letais com grande probabilidade.
A mais curto prazo, o fator que irá prevalecer na determinação da atitude das pessoas é o medo associado a uma maior perceção da nossa fragilidade. Esse medo conduz naturalmente a maior apetência para um nível superior de proteção por parte do Estado. Por sua vez, diferentes estados terão comportamentos muito diversos e até opostos: estados dirigidos por políticos com intenções autocráticas aproveitarão esse medo para reforçar tendências autoritárias em prejuízo de liberdades e garantias fundamentais; essa tendência já é evidente em países tão diversos como a China, os EUA, a Rússia e a Hungria. Em contraste, estados dirigidos por políticos sem intenções autocráticas aproveitarão a oportunidade para reforçar as condições de democracia e a qualidade e resiliência das suas instituições, combatendo os medos através de informação e ações caracterizadas por qualidade e transparência. Em estados progressivamente autocráticos as ilusões e/ou as ideologias prevalecerão sobre factos e o conhecimento qualificado, científico em particular, será desvalorizado. Em estados verdadeiramente democráticos, os factos prevalecerão sobre ilusões e/ou ideologias e o conhecimento qualificado, científico em particular, será valorizado.
Estou igualmente convencido de que o período pós-pandemia facilitará que se desenvolva uma maior desigualdade social, certamente em Estados progressivamente autocráticos.
Em Estados que pretendam reforçar as condições de democracia e a qualidade das suas instituições, essa será uma oportunidade dourada para conceber e executar programas que garantam igualdade de condições de acesso às oportunidades, para todos os cidadãos. Mas que oportunidades? Num Estado altamente centralizado como Portugal, em que as decisões são tomadas longe dos cidadãos, essas oportunidades serão condicionadas ou até determinadas pelo Estado. Num Estado descentralizado, em que as decisões são tomadas em proximidade dos cidadãos, essas oportunidades serão principalmente determinadas por instituições mais próximas das pessoas e até pelas próprias pessoas. Por outras palavras: um Estado centralizado favorece e estimula a dependência das pessoas e das instituições, limitando por definição a capacidade da sociedade criar valor; um Estado descentralizado favorece e estimula a autonomia das pessoas e das instituições, libertando pessoas e instituições para realizar o seu potencial e criar valor. Um Estado centralizado desresponsabilizada instituições e pessoas; um Estado descentralizado responsabilizada instituições e pessoas.
Um Estado centralizado está cheio de chefes e chefinhos que mandam; um Estado descentralizado tem líderes que inspiram pelo exemplo e libertam.
Regressando por momentos ao propósito que enunciei para a vida, criar significado, parece-me evidente que cada pessoa conseguirá criar mais significado ao longo da sua vida se estiver (1) inserida numa sociedade que lhe garanta igualdade de condições de acesso às oportunidades, sejam essas oportunidades externas à pessoa ou criadas por ela, e (2) dotada das ferramentas necessárias para agarrar essas oportunidades e correr com elas. Garantir a ocorrência destas duas condições parece-me ser o melhor “propósito” para Portugal, para o nosso futuro coletivo pós-pandemia. Uma das razões é que a verificação destas duas condições permite criar muito mais valor na sociedade, beneficiando todos; outra razão é estas condições permitirem criar e desenvolver instituições com mais qualidade e resiliência. Porém, este não será um processo simples, porque a sua ocorrência apenas é favorecida num Estado descentralizado e não é isso que temos em Portugal. A agravar, grande parte senão a totalidade do nível superior das tecno-estruturas públicas são de nomeação política, o que é inadmissível porque distorce seriamente a desejável igualdade de acesso às oportunidades, para além de comprometer a qualidade e eficácia das instituições; com demasiada frequência, pessoas nomeadas politicamente são incompetentes.
Como se constrói uma sociedade capaz de criar mais valor e que seja mais resiliente a crises e pandemias? Identifico três requisitos principais:
Em primeiro lugar temos de reformar o Estado, definindo de forma racional e rigorosa que papéis o Estado tem de garantir na sociedade. Em segundo lugar e resultante da definição anterior, é necessário conceber, garantir e fiscalizar um conjunto articulado de entidades públicas que garantam o cumprimento desses papeis, com missão clara, gestão profissional e corretamente dimensionadas. Em terceiro lugar temos de educar as pessoas para que desenvolvam autonomia intelectual.
Pessoas dotadas de autonomia intelectual serão sempre pessoas melhor habilitadas a desenvolver vidas ricas em significado e criar valor, seja esse valor financeiro, económico, social ou cultural. Serão também pessoas melhor habilitadas a criar instituições privadas e públicas com mais qualidade, melhor geridas e mais resilientes.
Reformar o Estado — em missão, execução e fiscalização — e garantir Educação — formar pessoas com autonomia intelectual — constituem os desafios mais importantes para construir um futuro pós-pandemia que seja melhor para todos. Se estas prioridades já eram importantes antes da atual pandemia, elas tornar-se-ão absolutamente essenciais a partir deste momento. Nesse tipo de futuro, “confiança” voltará a ter o valor que sempre deveria ter tido: uma forma de capital. Estes dois desafios são simples de enunciar, mas complexos de realizar porque exigem que cada pessoa, instituição e o próprio Estado chame a si um nível de responsabilidade muito superior àquele a que tem estado habituado a cumprir. Porém, o que significa “responsabilidade”?
Segundo o dicionário «The Oxford English Dictionary», responsabilidade é um atributo do comportamento humano que se evidencia em três tipos de situações independentes e que em geral se sobrepõem: (1) a existência de uma tarefa com a qual temos de lidar («handling reality»), (2) a oportunidade de tomar decisões ou actuar de forma independente e sem autorização prévia («acting autonomously») e (3) a necessidade de justificar a terceiros as decisões tomadas ou as acções realizadas («being accountable»). Por outras palavras, responsabilidade evidencia-se na forma como lidamos com a realidade — exercendo capacidade de pensamento crítico, valorizando factos e não ilusões e/ou ideologias — decidimos e actuamos com autonomia e prestamos contas pelas nossas decisões ou acções. Curiosamente, o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia de Ciências, define responsabilidade de uma forma mais limitada: «a qualidade de quem está apto a responder pelos seus actos». Na língua portuguesa «responsabilidade» parece ser a tradução literal de «accountability», e este tipo de definição surge igualmente noutras culturas latinas. Talvez este conceito mais limitado explique por que é que tantos portugueses confundem «responsabilidade» com «culpa» e fogem de qualquer um destes conceitos. Comparando as duas definições, a anglo-saxónica e a nacional, «responsabilidade» é considerada de forma mais abrangente em sociedades anglo-saxónicas e incorpora uma dimensão ética que está ausente na definição nacional.
A forma como se exerce responsabilidade numa sociedade acarreta consequências importantes, porque todas as sociedades estão sujeitas a forças e influências complexas, imprevisíveis e intensas, constituindo a atual pandemia disso exemplo. A sua resiliência a essas influências internas e externas é uma característica importante. Por «resiliência» refiro a capacidade e flexibilidade de aprendizagem, adaptação e evolução. A melhor forma de assegurar resiliência numa sociedade é estabelecer responsabilidade como um valor essencial que caracteriza pessoas, instituições e interacções entre pessoas e instituições que integram a sociedade. Por outras palavras, garantir que responsabilidade é um valor central da cultura que caracteriza a sociedade. Porquê? Porque responsabilidade significa lidar com situações reais, tomar decisões e executar acções com autonomia, tendo sempre em mente a prestação de contas a terceiros. Uma sociedade que assume responsabilidade como um valor central da sua existência e funcionamento, é necessariamente uma sociedade mais resiliente, porque mais assente em factos e não em ilusões ou ideologias, melhor informada por conhecimento qualificado e ciência, mais transparente, culturalmente mais aberta e tolerante, capaz de beneficiar mais eficazmente da exploração das diversidades que estão na raiz da inovação e de delegar poder de forma próxima das pessoas, não o centralizando. É igualmente uma sociedade em que as pessoas são incomparavelmente mais livres na definição e condução do seu próprio destino; se assim ocorrer, então estará instalado um clima genérico de confiança e a sociedade poderá ser mais justa e mais livre. Responsabilidade conduz necessariamente a dar poder às pessoas, tratando-as de forma adulta. Quando reproduzido em sociedade, este conceito conduz também e necessariamente a cidadania. Em consequência, cidadania não pode existir enquanto as pessoas e as instituições não forem educadas e estimuladas a ser responsáveis e isso exige educá-las para autonomia intelectual.
Estas reflexões fazem sugerir que o principal problema de Portugal é de natureza cultural: os cidadãos habituaram-se a não ter de assumir um nível apreciável de responsabilidade, imputando responsabilidades variadas a todo o tipo de entidades sentidas como externas a si, ao Estado sobremaneira, e, mais recentemente, a pessoas e a entidades supranacionais. Durante o longo período do Estado Novo, uma parte substancial dos cidadãos estava resignada a seguir regras concebidas, controladas e fiscalizadas por elites medíocres; em décadas mais recentes, uma parte substancial dos cidadãos continua limitada na sua capacidade de criação de valor, quer por estes terem qualificações reais demasiado limitadas quer por continuarem a ser liderados por elites medíocres. Em qualquer um desses períodos, considero que a sociedade portuguesa tem atribuído pouca importância ao conceito e à prática de responsabilidade, pois apenas assim compreendo o estado de subdesenvolvimento do país e a sua fragilidade actual. A agravar esta fragilidade, o Estado foi sendo apropriado por máquinas partidárias e de interesses especiais frequentemente caracterizados por incompetência, irresponsabilidade e até corrupção, para os quais tem sido benéfico estimular a diluição da responsabilidade até para assegurar a sua própria impunidade. Responsabilidade — tal como a defino e defendo — exige capacidade de pensamento crítico; a diluição da responsabilidade favorece a ignorância e a superficialidade, e estas são mais permissivas em relação à corrupção.
É esse o desafio que temos hoje pela frente: iremos continuar a diluir a responsabilidade que nos cabe — a responsabilidade de quem somos e de quem queremos ser, como pessoas, instituições e sociedade — ou vamos passar a assumir essa responsabilidade?
A resposta a esta pergunta é importante: no primeiro caso, teremos um futuro que dependerá excessivamente dos interesses de terceiros que apenas raramente estarão interessados no nosso sucesso; no segundo caso, se o fizermos com alguma eficácia poderemos construir um percurso de liberdade, pois a responsabilidade é a única via para a liberdade.
É este o futuro coletivo pós-pandemia que devemos e podemos construir. Deve ser este o nosso propósito.
José António Salcedo
Empreendedor e ex-Professor Universitário
[Artigo publicado originalmente na revista da Porto Business School, NORTE.AR]