A presidência de Biden e a Europa: “Plus ça change, plus c'est la même chose”? ["Quanto mais se muda, mais tudo se mantém"]. Ou não?
As eleições nos EUA terminaram. O resultado é conhecido. Como muitos, interrogo-me sobre o que poderá significar uma presidência Biden para o mundo e para a Europa, em particular. O que irá mudar e o que poderá continuar a ser o mesmo?
A presidência Trump tem sido um exemplo do movimento nacionalista "America First", abandonando acordos internacionais em que acreditava serem maus para os EUA. Foi transacional, disruptiva e unilateralista. Foi também pessoal e errática, moldada pelos seus instintos, relações com líderes, e mensagens do Twitter. A presidência Biden vai ser muito mais tradicional, trabalhando com organizações internacionais, restaurando o papel da América no mundo, e com base em valores democráticos ocidentais partilhados.
Muitos temiam que um segundo mandato de Trump desencadeasse o colapso da OTAN, a âncora da prosperidade e estabilidade europeias desde a Segunda Guerra Mundial. Mas a eleição de Biden acalmou estes receios, especialmente na Europa. É significativo que, pouco depois das projeções darem a vitória a Biden, Anne Hidalgo, a Presidente da Câmara de Paris, tenha tweetado: "A América está de volta!". Interessado em reconstruir as alianças europeias, Biden afastar-se-á da hostilidade explícita de Trump à UE e será um forte apoiante da OTAN. Mas o compromisso que os países da OTAN assumiram, em 2014, de avançar no sentido de gastar 2% do PIB na defesa, permanecerá na agenda de Biden. Biden será menos desagradável do que Trump, mas continuará a lembrar aos europeus que todos os países devem pagar a sua justa parte.
"Não podemos continuar a pagar pela proteção militar da Europa enquanto os Estados da OTAN não pagarem a sua quota-parte e viverem da riqueza. Temos sido muito generosos com a Europa e é agora altura de olharmos por nós próprios". Terá sido "tweet" de Donald Trump? Não. Estas foram palavras de John F. Kennedy, falando ao seu Conselho de Segurança Nacional, em 1963. Como vemos, as queixas sobre o facto de os europeus não gastarem o suficiente na sua própria defesa são quase tão antigas como a própria aliança.
Relativamente ao comércio global, Biden segue algumas das mesmas tendências protecionistas de Trump. Ele propõe que as agências federais adquiram apenas serviços e bens norte-americanos, e defende um imposto para penalizar as empresas norte-americanas pela mudança de empregos e produção no estrangeiro. Tal como Trump, Biden argumentou que a Organização Mundial do Comércio precisa de ser reformada e ser mais capaz de lidar com economias não mercantis como a China. Biden assinalou que continuará a ser duro com a China na frente comercial, mas é pouco provável que venha a replicar o regime tarifário de retaliação de Trump. Irá ele remover ou baixar as taxas? Não é claro, neste momento.
Trump chamou à Europa o "inimigo número um" dos EUA no comércio e impôs taxas sobre o aço e o alumínio, bem como sobre os vinhos e outros bens europeus. Embora o tom fique mais amistoso, é pouco provável que a administração Biden regresse ao estado de coisas anteriormente existente, da noite para o dia. Embora possa ser mais fácil fechar um acordo comercial com a administração Biden, esta não será uma negociação fácil, especialmente tendo em conta que o défice comercial dos EUA com a Europa aumentou em mais de 170 mil milhões de dólares. A UE irá procurar pôr fim às pautas aduaneiras dos EUA. Mas, quando se trata de questões como o imposto digital europeu sobre gigantes tecnológicos e a disputa a longo prazo sobre subsídios para a Airbus e a Boeing, não haverá soluções fáceis.
Também as tensões comerciais com a China irão provavelmente persistir. Biden herda uma política externa americana que vê Pequim com mais preocupação do que durante a era Obama. É pouco provável que o estado de coisas se altere sob a égide da Biden. De facto, a avaliação de que a China representa uma ameaça a longo prazo para os interesses dos EUA no mundo é uma das poucas questões que Democratas e Republicanos têm em comum. Biden procurará reforçar a coordenação com parceiros europeus em matéria de rastreio de investimentos, partilha de informações e tecnologias emergentes, num esforço para ter uma abordagem comum em relação à China. Embora a Comissão da UE se tenha juntado a Washington para declarar a China como "rival sistémico", nem todos os países europeus partilham este ponto de vista. O maior obstáculo é a Alemanha, que tem as mais fortes tentativas comerciais da Europa para com a China. Outros países europeus estão ansiosos por preservar as relações económicas com a China. Biden vai pressionar a Alemanha e outros países relutantes da UE a juntarem-se a uma coligação de democracias liderada pelos EUA para tentar travar a crescente influência da China na cena internacional. Em última análise, a questão é: Será que a Europa estará ao lado dos EUA na tentativa de manter a influência chinesa sob controlo ou não? Face ao crescente mal-estar público sobre a repressão da China em Hong Kong e a utilização de campos de concentração para intimidar a sua população muçulmana, é provável que a posição de Biden prevaleça.
A questão transatlântica mais promissora a ser acordada é a do ambiente. Os EUA acabam de sair do acordo climático de Paris, mas isso não significa que não possam regressar assim que Biden tome posse. Fazê-lo mostrará que os EUA estão, de novo, seriamente empenhados em ajudar a combater as alterações climáticas. É uma questão que Biden deixou clara durante a sua campanha. Biden quer que os EUA eliminem gradualmente a sua dependência do petróleo e do gás a longo prazo e estabeleceu um objetivo de emissões-zero até 2050. Também afirmou que irá liderar um esforço global para assegurar que cada grande país emissor de carbono aumente as suas próprias ambições em relação às metas climáticas nacionais. China e Japão estabeleceram recentemente novos objetivos agressivos para se tornarem neutros em carbono, colocando assim maior pressão sobre Biden para melhorar os objetivos dos EUA, uma vez que ele procura recuperar a liderança na diplomacia climática global. E os países da UE precisam que os EUA voltem à coligação internacional para combater as alterações climáticas.
Como mencionei no meu artigo anterior, esta eleição presidencial dos EUA é sobre o papel que os Estados Unidos irão desempenhar no mundo. Biden prometeu pôr fim à abordagem isolacionista de Donald Trump. Após quatro longos anos de persistente perturbação, crítica e hostilidade, e apesar das questões substanciais que restam, a Europa pode agora respirar mais facilmente.
[artigo de opinião publicado, originalmente, no Jornal de Negócios, a 03.12.2020]