Será que agimos de modo mais ou menos honesto dependendo de palavras que lemos na explicação de um jogo?* Penso que a maioria de nós diria, como eu dizia, que agir ou não de forma honesta não é uma questão sensível a este tipo de manipulação.
Num estudo realizado por Bryan, Adams e Monin (2013), os participantes foram divididos em dois grupos*. Um dos grupos recebeu uma instrução que tinha o foco na ação de fazer batota e que dizia o seguinte: "Estamos interessados em saber quão comum é a batota na faculdade. Vamos realizar um jogo para que possamos determinar a taxa aproximada de batotas, de forma que não será possível sabermos se você está a fazer batota." O outro grupo recebeu a mesma instrução, mas com o foco nas pessoas - ao invés da palavra "batotas", havia batoteiros.
Depois das instruções, os participantes iniciavam um jogo rápido. Os investigadores pediam aos participantes que pensassem num número entre 1 e 10. Depois disso, quando os participantes já tinham tido tempo para pensar, diziam que se o número pensado fosse par, o participante receberia cinco dólares, e que se fosse ímpar, não ganharia nada.
Não havia forma de auditar as respostas dos participantes, por isso esperava-se que a quantidade de números pares e ímpares fosse semelhante nos dois grupos. No entanto, não foi isso que aconteceu. A quantidade de pessoas que pensou em números pares foi o dobro no grupo que recebeu as instruções com foco na ação - batota. Essa pequena mudança no enquadramento não deveria fazer a menor diferença, mas fez. Quando o foco foi nos batoteiros, os participantes foram influenciados, de modo não consciente, a agir de forma mais honesta**. Como este, existe um conjunto relevante de estudos que mostra o quão suscetíveis somos a variáveis desta natureza.
Ultimamente, o uso do termo "pessoas de bem", e da sua versão mais específica "cidadãos de bem", tem sido cada vez mais frequente, aqui e no Brasil. Com intensidades diferentes, mas com intenções e usos semelhantes, esta é uma ideia perigosa para a sociedade. Revela, por um lado, uma significativa desconexão com a realidade cognitiva e comportamental das pessoas que as Ciências Comportamentais nos indicam, como no exemplo acima, e, por outro, denota um uso exclusivista, pouco empático e nada cosmopolita acerca de modos de ser e pensar - são "pessoas de bem" aquelas, e somente aquelas, que pensam como eu ou que se parecem comigo.
De um ponto de vista social e político, esta ideia das "pessoas de bem" é-nos confortável, dá-nos a sensação de pertença, mesmo ilusória, a uma categoria, a um grupo, ou mesmo a uma "espécie" à parte. Neste contexto, é mais provável que qualquer transgressão de normas legais ou morais seja, por nós, racionalizada e enquadrada como moralmente aceitável. Podemos não pagar os impostos devidos, podemos maldizer os refugiados, podemos, inclusive, agir de modo homofóbico. Estaremos a fazer tudo isso por supostas causas corretas: seja porque o Estado "é um grande aldrabão" ou porque "os refugiados não são confiáveis", ou, ainda, porque "não devemos influenciar as nossas crianças no caminho da homossexualidade", afinal, muitas "pessoas de bem" consideram que "é uma escolha pessoal". Sei que soa estranho, mas, por um lado, estes são alguns dos comportamentos exibidos por algumas autointituladas "pessoas de bem" e, por outro lado, nalguns contextos mais perversos, estas pessoas são consideradas "de bem" exatamente porque exibem estes comportamentos. A crença nas "pessoas de bem" não está necessariamente vinculada a nenhuma cor política, a conservadores, progressistas, liberais. Esta crença parece ser transversal às mais variadas expressões políticas e sociais.
Nas organizações podemos não utilizar frequentemente a expressão "pessoas de bem". Porém, expressões como "gente boa" e "boas pessoas", mesmo que não sejam sinónimos, têm, por vezes, o mesmo fundamento. Do ponto de vista empresarial, a ideia de que existem "pessoas de bem" e, consequentemente, "pessoas de mal" é crítica, não só porque é falsa, mas, também, porque produz efeitos práticos, tornando o pensamento sobre o compliance anticorrupção numa disputa primitiva e ilusória entre duas equipas. Nesta conceção de mundo, a desonestidade é um problema circunscrito às pessoas mal-intencionadas - as chamadas "maçãs podres" -, que fazem cálculos de custos e benefícios a todo o momento para decidir se vão agir eticamente*.
Conseguimos quase sempre manter intacta a nossa auto perceção de honestidade, mesmo que para isso tenhamos de rocambolescamente convencermo-nos de que são moralmente aceitáveis comportamentos como aldrabar os quilómetros rodados numa viagem para receber um reembolso maior da empresa; ou beneficiarmos, no exercício de nossas funções, uma pessoa conhecida em detrimento de outras porque sabemos que isso poderá ser vantajoso noutro momento. "Todo o mundo faz isso", "se eu não fizer alguém fará", "fiz isso para ajudar" são apenas alguns exemplos das desculpas que damos a nós mesmos no processo de racionalização de nossas ações. Fazemos isso para que os nossos comportamentos caibam numa baliza ética bastante, e cada vez mais, flexível.
Para melhorarmos a situação, em primeiro lugar, é importante termos humildade para não nos colocarmos à parte deste fenómeno. Por exemplo, conceitualizando-nos como "pessoas de bem", em contraste com as "pessoas de mal". Depois, é importante termos em conta que podemos contrariar, com a ajuda das Ciências Comportamentais, uma parte relevante desses comportamentos desonestos que passam sob os nossos radares éticos nas organizações.
É importante sermos realistas e percebermos, por mais difícil que seja, que não somos pessoas categoricamente honestas ou desonestas, assim como é importante termos em mente que é possível e desejável diminuir os comportamentos desonestos. Existem pessoas, mas muito poucas, que se comportam sistematicamente de modo desonesto, que escalam a corrupção e que fazem cálculos complexos e sistemáticos sobre os custos e os benefícios de uma ação desonesta. Os programas de compliance de empresas e governos não devem ser criados apenas para atingir estas poucas pessoas, sob pena de produzirem efeitos colaterais sobre todas as outras pessoas e significativas externalidades negativas organizacionais.
Podemos construir contextos que promovem comportamentos honestos, não necessariamente com mais punições, controlos e/ou normas. Queremos ser honestos, desejamos fortemente agir assim, mas, muitas vezes, precisamos de um estímulo.
* Exemplos e referências aparecem no livro Muitos, de Carlos Mauro, Gabriel Cabral, Renato Capanema e Tânia Ramos, publicado em 2021.
** Foram realizados outros estudos online, não presenciais, cujos resultados mostraram efeito significativo, apesar de percentualmente a diferença ser menor. Para quem tiver interesse, sugiro a leitura do artigo de Bryan, Adams e Monin (2013).